• Ilustrada

    Tuesday, 30-Apr-2024 07:59:12 -03

    Kendrick Lamar se supera em disco e mostra que rap ainda é relevante

    LULIE MACEDO
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    18/04/2017 02h00 - Atualizado às 14h47
    Erramos: esse conteúdo foi alterado

    Carlo Allegri/Reuters
    Kendrick Lamar performs during the Coachella Valley Music and Arts Festival in Indio, California, U.S. April 16, 2017. Picture taken April 16, 2017. REUTERS/Carlo Allegri ORG XMIT: CRA408
    O rapper Kendrick Lamar se apresenta no festival Coachella, na Califórnia

    Pode parecer apenas mais um disco de rap. Não é. Com o lançamento de "DAMN.", na última sexta, e o show de encerramento no festival Coachella, domingo (16), o rapper americano Kendrick Lamar produz algumas constatações.

    Na era do single, em que artistas e público vivem de sucesso em sucesso, um álbum volta a ser aguardado, comentado e recebido como obra completa. Título, arte da capa, ordem das músicas, participações. Tudo foi exaustivamente discutido por fãs e indústria por semanas (talvez meses) antes da estreia.

    Kendrick Lamar

    Além de expectativa, o lançamento do quarto álbum de estúdio suscitou diversas teorias. A mais forte pregava a existência de um segundo volume do disco, a ser lançado no domingo de Páscoa, em alusão à ressurreição de Cristo.

    Todo o "buzz" em torno do artista não é fruto de habilidade midiática. Ele não conta dinheiro em vídeos, não namora estrelas (ficou noivo da namorada de colégio), não alimenta redes sociais –a conta no Instagram tem 4,6 milhões de seguidores e duas fotos. Em 2017, um artista ainda pode estar no centro das atenções por causa de sua música. E só.

    Após muito tempo sem renovações estéticas e temáticas, o rap dos EUA mostra que pode ser inovador, questionador e relevante politicamente. Justiça seja feita, Lamar vem nessa toada desde 2012, quando "Good Kid, M.A.A.D. City" o pôs como um dos mais intrigantes MCs de sua geração.

    Sob a tutela de Dr. Dre (rapper, ator e um dos maiores produtores da história do hip hop), vendeu mais de 1 milhão de cópias narrando a juventude em Compton, no subúrbio de Los Angeles –berço dos pais do gangsta rap, o grupo N.W.A. (1986-1991), e palco de diversos conflitos raciais.

    Aos 25 anos, o garoto introvertido mostrava, no segundo disco, ser um rimador poderoso e mestre no "storytelling" (letras que narram histórias).

    Esses predicados levaram Lamar ao topo em 2015, quando "To Pimp a Butterfly", o terceiro disco, virou trilha sonora do movimento Black Lives Matter, levou sete Grammys e um fã fervoroso, Barack Obama, que elegeu "How Much a Dollar Cost" como sua música favorita naquele ano.

    PASSO SEGUINTE

    A ansiedade que cercou o lançamento de "DAMN." é sintoma da típica síndrome do passo seguinte, pela qual passam artistas de todos os matizes. Lamar precisava mostrar que há mais da substância e consistência de onde haviam saído os trabalhos anteriores.

    E, maldição, ele conseguiu. Para ouvidos menos acostumados ao ritmo e poesia (rap, ou rhythm and poetry), parece difícil perceber a evolução. Mas há maneiras objetivas de fazê-lo: os "rhyme schemes" (esquemas rímicos, como na poesia) surgem com maior complexidade, em versos mais longos, com rimas multissilábicas.

    Ouça no spotify

    A variação de "flow" (jeito de rimar) é maior, o controle do fôlego e as acrobacias que faz com a voz são ainda mais presentes. Lamar se apresenta como um atleta da palavra, como já se referiram a ele.

    Já a temática não é exatamente uma surpresa. O duelo com a própria consciência antes e depois da fama é algo esperado –o garoto pobre de Compton versus o artista milionário– aparece em todo o disco. Autoanálise e percepção crítica de si não são novidade. Ele já versou sobre depressão e suicídio (escute "u", de "To Pimp a Butterfly").

    A religiosidade é outro tema já explorado, mas que ganha contornos mais firmes.

    É natural a expectativa sobre o que ele, um dos mais politizados de sua geração, tem a dizer dos EUA de Trump. A maneira com que fez isso não poderia ser mais esperta: em vez de bradar contra o inimigo, colocou-o na vitrine ao samplear uma frase do comentarista da Fox News Geraldo Rivera. "O hip hop causou mais danos à juventude americana que o racismo."

    SONORIDADE

    Lamar também subverte a sonoridade que construiu até então –baseada em free jazz, soul, funk e spoken word.

    Em "DAMN.", abraça o trap, dissidência que leva o hip hop para um ambiente eletrônico, mas se mantém fiel ao soul dos anos 1970 e à blaxploitation, ecoando artistas como Chi-Lites e Curtis Mayfield.

    Na comparação, esse é um disco mais "fácil" de ouvir, mais pop e r&b, menos abrasivo que os anteriores. As participações sublinham isso.

    A essa altura, Lamar poderia ter reunido o PIB do hip hop –Jay Z, Kanye West, Drake. Em vez disso, trouxe só três convidados: Zacari, um desconhecido cantor e multi-instrumentista, Rihanna, rimando de igual para igual e não só como "cantora de refrão" (como costuma acontecer quando mulheres são convidadas para participações), e"¦ o U2.

    Este causou discórdia quando a setlist vazou. Seriam Kendrick Lamar e Bono Vox juntos o extremo do bom-mocismo desde Batman e Robin?

    De novo, Lamar foi mais sagaz do que a audiência previu. É preciso algum esforço para reconhecer Bono em "XXX.". Está lá, mas de um jeito tão "cool" que passa batido.

    Fazer Bono Vox soar bem. Essa talvez tenha sido a contribuição mais inestimável de Kendrick Lamar à música.

    DAMN
    ARTISTA Kendrick Lamar
    GRAVADORA Aftermath/Interscope
    QUANTO Apple Store (R$ 25) e Spotify e Deezer (streaming)

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024