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    Mostra destaca como Cícero Dias construiu obra com luz tropical

    SILAS MARTÍ
    DE SÃO PAULO

    21/04/2017 02h30

    No engenho de açúcar de Cícero Dias, homens brotam do chão e mulheres carnudas desabrocham como flores, de pétalas aos montes. Lavadeiras nuas esfregam roupas no riacho, e uma cortesã aguarda o senhor da terra refestelada sobre os lençóis cor-de-rosa de uma cama plantada bem no meio do canavial.

    Esse mundo fantástico -e encharcado de sexo- das telas do modernista, alvo de uma retrospectiva agora no Centro Cultural Banco do Brasil paulistano, está estruturado em cima da cor, tons luminosos, às vezes berrantes, como o vestido escarlate das gêmeas de outra pintura.

    Mesmo em seus trabalhos mais abstratos, Dias não esquece a luz dos trópicos. Recife, onde o mundo começava, na visão do artista nascido num engenho ali perto, parece entranhado até nas mais secas de suas composições construtivistas, de formas angulosas que parecem serenas praias pernambucanas colapsadas e passadas a limpo com régua e esquadro.

    Divulgação
    Infância em Boa Viagem', tela de Cícero Dias realizada em 1950, agora em mostra do artista no CCBB
    'Infância em Boa Viagem', tela de Cícero Dias realizada em 1950, agora em mostra do artista no CCBB

    É como se suas lembranças um tanto edulcoradas de menino se traduzissem na mais avançada das vanguardas geométricas, como deixam claro as 125 obras da mostra.

    Toda essa metamorfose, no caso, aconteceu em Paris, onde Dias viveu da década de 1930 até sua morte, há 14 anos. Na capital francesa, então o centro nevrálgico do mundo da arte, o artista foi celebrado pela crítica como um selvagem civilizado, um jeito romântico de aludir à potência de uma obra singular que começava a flertar com o cubismo e certa aridez geométrica.

    Dias, até então visto como um surrealista alinhado a Chagall e suas musas flutuantes, encontrou em Picasso uma inspiração mais forte -seus primeiros retratos da mulher, Raymonde, evocavam, aliás, os desvios anatômicos dos personagens do espanhol.

    Divulgação
    Abstração', tela de Cícero Dias realizada em 1951, agora em mostra do artista no CCBB
    'Abstração', tela de Cícero Dias realizada em 1951, agora em mostra do artista no CCBB

    Esses desvios depois ficaram ainda mais evidentes numa série de telas absurdas, reunidas agora pela primeira vez desde a década de 1940.

    Nesses quadros que fez em Lisboa, onde se refugiou da França ocupada pelos nazistas, um galo cheio de arestas pode ser ao mesmo tempo um abacaxi, um guarda-chuva se torna um instrumento musical e um mamoeiro talvez seja também um dançarino.

    "São obras de dupla leitura", diz Denise Mattar, que organiza a mostra. "Mesmo protegidos, eles estavam mergulhados na guerra, então ele estava exorcizando ali os fantasmas do conflito."

    Mas esses monstros só desapareceram mesmo depois da guerra, quando o artista voltou a Paris e mergulhou na abstração geométrica.

    Na última ala da mostra, aliás, uma sucessão de telas construtivistas dá a impressão de que Dias teria abandonado de vez aquele engenho primordial da base de sua obra.

    Mas tudo volta, em contornos mais firmes e estruturados, em algumas das últimas telas figurativas ali, de moças de sombrinha conversando à sombra de jardins tropicais -seu retorno triunfal à casa.

    CÍCERO DIAS
    QUANDO abre sex. (21), às 11h; de qua. a dom., das 9h às 21h; até 3/7
    ONDE Centro Cultural Banco do Brasil, r. Álvares Penteado, 112, tel. (11) 3113-3651
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