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    CRÍTICA

    Inadequação do corpo anuncia um futuro em filme sobre Laerte

    INÁCIO ARAUJO
    CRÍTICO DA FOLHA

    22/04/2017 02h30

    Impossível, à visão de "Laerte-se", não dispersar de tempos em tempos, ser levado a outros campos. A um velho filme com título (brasileiro) genial: "Homem, Mulher Até Certo Ponto" (que revelou Mae West a toda uma geração). Ou ao humor fabuloso de Buster Keaton, cujo corpo parece, sempre, estar em confronto com o espaço à sua volta. Um corpo inadequado?

    Inadequação é uma palavra forte, afinal, no discurso de Laerte em "Laerte-se". Quem é? Ele ou ela? Um homem que virou mulher, talvez. Ou um corpo desde sempre mal acomodado em si mesmo: o de homem que, desde a adolescência, sentiu o desejo por outros homens.

    Keiny Andrade/Folhapress
    Retrato da cartunista Laerte, que será objeto de um novo documentário, chamado "Laerte-se"
    Retrato da cartunista Laerte, que será objeto de um novo documentário, chamado "Laerte-se"

    Com Laerte estamos, em suma, no território da ambiguidade perfeita. Esse corpo inadequado seria meramente pessoal? Não na visão de Freud, mais de um século atrás, que sempre insistiu na convivência de masculino e feminino no homem (espécie).

    Os avanços cirúrgicos permitem hoje que o corpo seja refeito. Talvez haja casos em que o hermafrodita é tão evidente no sujeito que se impõe escolher entre um corpo e outro. O que faz de Laerte um "caso" não é isso.

    Trata-se, primeiro, de um personagem público, um artista de sucesso. Seu corpo passa em determinado momento a ser sua obra. Troca as vestimentas de homem pelas de mulher quando tem por volta de 60 anos.

    Não é uma menina. É uma senhora que surge na imagem. E uma senhora que se habituou a ser homem por décadas e décadas. Assim como do homem emerge a mulher, por momentos temos a percepção inversa. Ela ajeita com as mãos os longos cabelos, como mulher. Ela mostra sua casa. É bagunçada: como a minha cabeça, diz. Mas podemos pensar: como a de um homem?

    É isso que nos vão mostrando as perguntas de Eliane Brum e as imagens de Lygia Barbosa: uma certa vanguarda radical da experiência corporal. Um corpo "inadequado", que recusa uma identidade definitiva.

    Daí esse corpo ter se tornado objeto de curiosidade: o que se passou? Que transformação é essa? É algo aponta uma espécie de destino futuro humano, talvez: corpo reversível, ora mulher, ora homem. Como, aliás, os de seus personagens, Hugo e Muriel.

    Daí também, aparentemente, a hesitação: seria o caso de fazer uma operação para colocar seios? Isso aumentaria o território de ambiguidade ou levaria à construção de um corpo unicamente feminino?

    Daí o título estranho: "Laerte-se". Reflexivo. Mas que também pode ser lido sem o hífen: "Laer/tese". Como quem introjeta um destino inscrito desde sempre em seu corpo. Como quem anuncia um talvez destino humano.

    LAERTE-SE
    DIREÇÃO Lygia Barbosa da Silva e Eliane Brum
    PRODUÇÃO Brasil, 2017, 14 anos
    QUANDO sábado (22), às 23h15, no Reserva Cultural (av. Paulista, 900, tel. (11) 3287-3529
    AVALIAÇÃO bom ★★★

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