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    Crítica

    Documentário sobre cúmplice do nazismo reflete sobre a omissão

    ALEXANDRE AGABITI FERNANDEZ
    DE SÃO PAULO

    24/04/2017 14h17

    Divulgação
    Cena do documentário 'Uma Vida Alemã'
    Cena do documentário 'Uma Vida Alemã'

    "Sou uma dos covardes. Resistir seria colocar a vida em risco. O país era um imenso campo de concentração", diz Brunhilde Pomsel (1911-2017) — última testemunha a ter conhecido de perto a máquina do poder nazista — neste documentário desconcertante.

    Entre 1942 e 1945 ela trabalhou como estenógrafa no Ministério da Propaganda, em contato direto com Joseph Goebbels, um dos mais furiosos líderes nazistas. Apesar disso, ela diz não se sentir culpada "a menos que se culpe toda a população alemã por ter permitido que aquele governo chegasse ao poder".

    Ao dar a palavra a uma funcionária subalterna como Pomsel, sem fazer comentários, "Uma Vida Alemã" levanta uma questão delicadíssima: a responsabilidade individual frente à barbárie. Isso é especialmente importante hoje, quando a extrema-direita populista ganha terreno numa Europa sacudida pela crise econômica, contexto cheio de analogias com o caldo de cultura que permitiu a ascensão do nazismo.

    Ela queria viver sua vida e fechou os olhos para o horror. Como outros colaboradores do regime, escamoteia responsabilidades com muita autocomplacência, onipresente em sua fala. Surge quando afirma que sua educação inculcou-lhe um "senso do dever prussiano". Ou quando minimiza o fato de ser filiada ao partido nazista, pois "todo mundo era". Considerava seu emprego "igual a outro qualquer", mas deixa claro que o aceitou pelo excelente salário.

    Em um dos pontos altos do filme, Pomsel assume tom desafiador dizendo que é muito fácil julgar, a partir do conhecimento que hoje temos do passado, as pessoas que se omitiram. O espectador logo se pergunta o que teria feito numa situação como aquela.

    A estenógrafa diz ter sabido da existência dos campos de concentração, mas acreditava que eram "campos de reeducação" e que só soube do Holocausto cinco anos depois, ao sair da prisão soviética.

    O incômodo causado pelo discurso de Pomsel é enfatizado pelo enquadramento do rosto cheio de rugas em primeiro plano, pelo fundo escuro que a coloca num espaço neutro e atemporal.

    A montagem não elimina gestos, hesitações e os instantes de reflexão de sua fala, só interrompida por inserções de frases delirantes extraídas dos discursos de Goebbels e por fragmentos de filmes de época, que funcionam como contraponto às palavras dela. Um trecho de um filme inédito, que mostra cadáveres nus sendo recolhidos nas ruas do gueto de Varsóvia e enterrados numa cova profunda, é especialmente atroz.

    Em relação ao antissemitismo, procura aparentar distância. Fala positivamente de um antigo patrão, um advogado judeu. E cita várias vezes a amiga Eva Löwenthal -que acabou deportada para Auschwitz, onde foi assassinada-, a qual diz ter ajudado quando a perseguição aos judeus aumentou.

    Em seu discurso feito de palavras medidas, Pomsel insiste na tese da ingenuidade, da alienação coletiva, passando longe do remorso. Refugia-se no papel de vítima, comum em muitos cúmplices do nazismo. O filme é um poderoso documento histórico que tem o mérito de convidar à reflexão sobre o oportunismo, a hipocrisia e suas terríveis consequências para que aprendamos com o passado.

    *

    UMA VIDA ALEMÃ
    DIREÇÃO: Christian Krönes, Florian Weigensamer, Olaf Müller e Roland Schrotthofer
    ELENCO: Brunhilde Pomsel
    PRODUÇÃO: Alemanha, 2016

    Edição impressa

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