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    '50 anos bastavam', teria dito Borges sobre 'Cem Anos de Solidão'

    SYLVIA COLOMBO
    DE BUENOS AIRES

    03/05/2017 02h00

    Nem todo mundo adorou "Cem Anos de Solidão". Seu crítico mais mordaz foi o polemista e conterrâneo Fernando Vallejo, 74. Em seu livro "Peroratas", o autor de "A Virgem dos Sicários" publicou um texto rejeitado por uma revista literária colombiana.

    Nele, Vallejo desmoraliza a obra, por meio de algumas passagens, como a abertura, que diz: "Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo." Diz Vallejo: "Muitos anos depois de quê, Gabito? Tem de explicar [...]."

    O cineasta Pier Paolo Pasolini também considerou o romance superestimado. Num artigo de 1973, o italiano escreveu que a obra soava a algo batido, "escrito com muita vitalidade, mas ainda dentro do tradicional maneirismo barroco latino-americano".

    Outro dos que criticavam a obra era o argentino Jorge Luis Borges. Embora não tendo escrito essa frase em lugar algum, pessoas do meio literário dizem que o autor de "O Aleph" achava "Cem Anos" enfadonha –segundo contam, ele dizia "que com 50 anos já dava para contar toda a história".

    "Essa é uma das tantas coisas sobre Gabo que ficarão entre a realidade e a ficção. A frase é bem borgiana, mas ninguém sabe afirmar se é real ou não", diz Ezequiel Martínez, diretor da Bibliotaca Nacional de Buenos Aires.

    CARIBE NO MAPA DA LITERATURA

    Em uma entrevista ao jornal "The New York Times" no fim de sua gestão, o então presidente dos EUA, Barack Obama, contou que "Cem Anos de Solidão" era um dos livros que ele tinha dado de presente à sua filha Malia. Um de seus antecessores, Bill Clinton, era outro fã da obra, além de amigo do autor.

    Mas não foi sempre assim.

    "Quando 'Cem Anos' surgiu, quem era caribenho, como eu, foi tomado por uma explosão de alegria, pois aquilo falava sobre a nossa vida e com a nossa linguagem. Mas para o resto do mundo era algo exótico. Meus amigos norte-americanos não o entendiam", conta o porto-riquenho Hector Feliciano, editor de "Gabo, Periodista" (FNPI).

    Ele lembra também que até então não se tratava o Caribe como região culturalmente particular e que caribenhos de outros países passaram a se sentir identificados.

    "Aquele misticismo eu achava que só existia em Porto Rico. Lembro de meus tios do interior chegando para visitar-nos na capital e contando que tinham falado com fantasmas de antepassados. Era natural, mas não sabíamos que isso existia em outras partes do Caribe. E está tudo em 'Cem Anos'", conclui.

    Para o colombiano Jorge Franco ("Rosario Tijeras"), Gabo foi um grande inspirador de sua geração, mas também limitou outros autores, pela dificuldade de saírem debaixo da sombra de "uma figura tão canônica como a de García Márquez", diz.

    Como Feliciano, Franco crê que a obra cative, em especial, pela linguagem e pela forma tão particular como reconstrói a vivência do autor.

    Em sua famosa entrevista a Luis Harss, em 1966, Gabo dizia que o que de mais interessante havia em sua vida tinha ocorrido até seus 8 anos de idade. "Depois, tudo me resultou bastante plano."

    "Cem Anos" tem como matéria-prima sua infância em Aracataca, onde foi criado pelos avós, numa casa sempre cheia de gente, parentes, amigos, indígenas entrando e saindo e contando histórias.

    Macondo era o nome de uma plantação de bananas, cuja placa leu ainda criança, e a partir dessa mistura construiu o universo de "Cem Anos de Solidão".

    Cem Anos de Solidão (Nova Edição)
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    Na obra, Macondo é uma cidade mítica, fundada por pessoas que fugiam de uma guerra (alusão ao constante conflito no país), envolta em pressentimentos da chegada de catástrofes ou pestes, como a da insônia, a primeira a atacar a população.

    Na Colômbia, o livro é lido de forma diferente dependendo da região. "Todos a reconhecem como algo colombiano, mas ao mesmo tempo exótico", conta Franco, que não é da costa, mas de Medellín.

    Quando perguntavam ao próprio autor sobre sua influência na literatura latino-americana, dizia que não tinha tanta ambição. "Eu só queria escrever do jeito que falava a minha avó", dizia.

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