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Solidão ocupa não só 'Cem Anos', mas a obra de García Márquez
JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA
ESPECIAL PARA A FOLHA03/05/2017 02h00
"Cem Anos de Solidão" alcançou o duvidoso estatuto da "popularidade mediada", definida por Renato Poggioli. Isto é, a saga do povoado imaginário de Macondo e da família de José Arcádio Buendía e Úrsula Iguarán parece ser conhecida por todos —até pelos que não leram o livro.
Nenhum romance latino-americano obteve sucesso similar de público e de crítica.
As circunstâncias de sua escrita, como se sabe, foram adversas. Gabriel García Márquez residia na Cidade do México e tanto enfrentava condições financeiras precaríssimas quanto nutria sérias dúvidas acerca do projeto.
A escrita do romance principiou em 1965 e foi concluída em julho do ano seguinte. Incerto, García Márquez enviou partes do manuscrito a Carlos Fuentes. Sem dúvida, sentiu-se reconfortado com a carta do autor de
"Machado de la Mancha", remetida de Paris em 15 de abril de 1966:"Tuas primeiras 70 páginas são magistrais [...]. Kafka, Faulkner, Borges, Mark Twain: com essas páginas, querido Gabriel, participas do no-man's land dessas grandezas e dessas companhias".
Fuentes acertou em cheio. Em diálogo com Plinio A. Mendoza, o autor de "Crônica de uma Morte Anunciada" recordaria o atrito que definiu sua literatura: de um lado, a oralidade, herdada da avó; de outro, a ficção de Kafka.
A primeira "contava as coisas mais atrozes sem se comover, como se fossem algo que tinha acabado de presenciar". O segundo, "em alemão, contava as coisas da mesma forma que minha avó". Daí, o pulo do gato: "Usando o mesmo método [...] escrevi 'Cem Anos de Solidão'".
A solidão, tema central do romance, já se encontra no seu livro de estreia, "La Hojarasca", de 1955, -cuja ação, aliás, transcorre em Macondo.
O "labirinto da solidão" de Gabriel García Márquez implica dois níveis.
Na história dos Buendía, a fundação do mítico povoado respondeu à necessidade de José Arcádio de fugir após cometer um assassinato e ao desejo de escapar da sombra do incesto do matrimônio com sua prima, Úrsula. O isolamento em que viviam é a imagem acabada de um tipo particular de estar só no mundo.
Já o discurso de aceitação do Nobel, "A Solidão de Nossa América", apresentado à Academia Sueca em dezembro de 1982, é estruturado em torno dessa palavra: "Nosso maior desafio tem sido a insuficiência dos recursos convencionais para tornar nossa vida crível. Eis, meus amigos, o cerne de nossa solidão".
Ainda: "Como se não fosse possível outro destino senão viver à mercê dos dois grandes donos do mundo. Eis, meus amigos, o tamanho de nossa solidão".
Como superá-la? Forjar linguagens, imaginar mundos foi a resposta do escritor.
Mas o caminho foi longo. Em 1950, jornalista de província, ele publicou três artigos instigantes sobre antropofagia. Em "Possibilidades da Antropofagia", o jovem de 22 anos afirmou: "A antropofagia daria origem a um novo conceito da vida" -e isso no mesmo ano de escrita da "Crise da Filosofia Messiânica", de Oswald de Andrade!
Em "Possibilidade do Romance?", García Márquez defendeu que a narrativa colombiana só seria reinventada se "fosse afortunadamente influenciada por Joyce, Faulkner ou Virginia Woolf".
Cem Anos de Solidão (Nova Edição) Gabriel García Márquez Comprar Em 30 de setembro de 1967, desabafou com Fuentes: "O romance me deixou numa ressaca horrível: na verdade, subitamente me dominou o pavor de não ter dito nada em 500 páginas [...]".
No cinquentenário de "Cem Anos de Solidão", sabemos que disse muito, pois, como um perfeito antropófago, ele devorou toda a tradição do romance.
JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA é professor de literatura comparada na Uerj.
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