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    Crítica

    Com quase 40 poetas, 'Lira Argenta' tem momentos excelentes

    FELIPE FORTUNA
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    06/05/2017 02h06

    Ulf Andersen/Getty Images
    Charles Bukowski (1920-94) no talk show francês 'Apostrophes', em 1978
    Charles Bukowski (1920-94) no talk show francês 'Apostrophes', em 1978

    Celebração da poesia internacional, em edição bilíngue, sem salientar um idioma ou um período histórico, "Lira Argenta" é livro raro no panorama editorial –na quantidade e na qualidade das suas escolhas e traduções.

    Nas quase 400 páginas organizadas por Vanderley Mendonça, a poesia comparece em ordem aleatória: depois de um texto em que Étienne Dolet discorre sobre "O Modo de Bem Traduzir de Uma Língua a Outra", o leitor é apresentado a três poemas do cineasta David Lynch e, a seguir, três poemas de Charles Bukowski, cinco poemas de Heiner Müller, e assim por diante, em direção a Guido Cavalcanti, Ovídio, Paul Celan, num aglomerado salutar que se aproxima de 40 poetas.

    Tarefa monumental, mas os dados foram lançados, e o livro se apresenta como matéria bruta a ser absorvida gradualmente pelos leitores de poesia (aqueles 137 no Brasil que se importam com versos, ritmo, som, imagem, ideia): mesmo porque "Lira Argenta" não tem prefácio, não exibe qualquer critério para a seleção, publica orelhas sem texto.

    O livro se apresenta como reunião de plaquetas –e por isso a desigualdade é grande. As apresentações de cada poeta, por exemplo, são um caso à parte: podem ser sucintas, como no caso de Victor Hugo, e ainda assim trazer a informação de que "seu funeral foi um dos eventos públicos mais importantes depois da Revolução: 2 milhões de pessoas seguiram seu caixão em cortejo fúnebre".

    Ou não trazer data de nascimento e de morte de François Rabelais, apenas indicar "que viveu no século 16 e fez parte do Renascimento" (como seria diferente?), tachando o escritor de anarquista...

    Enfim, o maior problema dessas apresentações erráticas é o de não explicar a escolha dos poemas traduzidos.

    "Lira Argenta" reúne de tradutores novatos a veteranos como Augusto de Campos, óbvia referência na tradução de poesia. Assim, e se você for um daqueles 137 interessados, o livro poderá ser um manual de exercícios: na canção "Good Day Today", de David Lynch, os tradutores apresentam o título, em português, de um modo, e o mesmo título –agora um verso– de outro modo...

    Em um poema de Charles Bukowski, "the police have turned in their / badges" se tornou "os policiais se entregam a seus / distintivos"... Pode existir aqui uma tara sexual, mas o correto seria "A polícia entregou seus / crachás".

    Há erros escabrosos de tradução ao longo do livro (e Vanderley Mendonça, sendo ele mesmo um editor com altos critérios, deveria ter maior atenção com a revisão do livro, pois os problemas são numerosos).

    Mas há também bons e excelentes momentos, como a tradução de cinco poemas de Heiner Müller e mais cinco de Hans Arp, por Ricardo Domeneck; três poemas de Boris Vian, por Ruy Proença; dois impressionantes poemas do ucraniano Mitos Micleusanu, por Fernando Klabin; dois poemas retirados de "Charmes", de Paul Valéry, por Álvaro Faleiros e Roberto Zular; e Vanderley Mendonça consegue ótimos resultados nos três poemas de e.e. cummings, cuja lírica amorosa é intensa.

    Os poemas reunidos em "Lira Argenta" cumprem uma função essencial no debate sobre tradução: devem ser lidos, relidos, discutidos e criticados nos seus acertos e erros, nas suas soluções e nos seus impasses. A esperança é que mais de 137 pensem assim, e o livro possa mesmo se tornar uma referência no seu minúsculo, mas brilhante, campo de atuação.

    Felipe Fortuna, 54, é poeta e ensaísta. Traduziu a obra completa de Louise Labé (Siciliano, 1995) e "Briggflatts", do poeta inglês Basil Bunting (Topbooks, 2016).

    *

    Lira argenta - Poesia em Tradução
    AUTOR vários (org. Vanderley Mendonça)
    EDITORA Selo Demônio Negro
    QUANTO R$ 60 (392 págs.)

    Edição impressa

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