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    Kid Vinil nos ensinou a estar 'sempre famintos'

    ZECA CAMARGO
    COLUNISTA DA FOLHA

    20/05/2017 02h00

    Você, com seu celular na mão, pronto para baixar o último remix de um sucesso de Harry Styles, a versão mais pirata do último single do Bastille, o retorno do LCD Soundsystem, ou a obscura faixa de uma nova banda londrina da qual pouca gente já ouviu falar – digamos, "California light", do Childhood –, não, você não faz ideia do que era a emoção de esperar um programa de rádio, num horário específico da semana, por exemplo, numa tarde de domingo, para ouvir um pouco de música nova, especialmente se ela ia na contramão de tudo que se tocava em 99,9% das estações de FM. Essa era a experiência de ouvir Kid Vinil comandando o saudoso "New Beat", na rádio Antena 1, no início dos anos 80.

    Somada, claro, à expectativa –já bem descrita ontem mesmo nesta mesma Folha por meu contemporâneo Álvaro Pereira Júnior de soltar simultaneamente as teclas "play/rec" (dê um Google, se você não reconhece essa expressão) para gravar "a última do Kid" numa surrada fita cassete (pense num cartão de memória desses que você usa na sua GoPro, mas com uma capacidade de armazenamento de dados igual a 1/1.000.000.000.000 dele –cálculo aproximado). E depois ficar ouvindo aqueles "tesouros" a semana inteira, "tirando onda" dos amigos que não conseguiram gravar o programa –quando ninguém ainda sabia o que era tirar onda...

    A infinita curiosidade musical de Kid Vinil inspirou minha geração (hoje nos "baixo 50") e abriu um universo sonoro num cenário musical que era dominado pelo pop americano, um resquício de "disco", a chamada "boa MPB", e uma ou outra tentativa tímida de rock n'roll –lembrando que, no começo da década de 80, os gritos pioneiros de Rita Lee & Tutti Frutti já eram considerados "flashbacks".

    Cheguei um pouco tarde para o punk, mas fui apresentado à New Wave pela sabedoria de Kid –que era como todos que tinham o privilégio de gravitar na sua órbita o chamavam. Echo & The Bunnymen, Smiths, Siouxie and The Banshees, Cocteau Twins, Blondie –onde ele conseguia todos aqueles discos?

    Amigos que viajavam para fora –sobretudo a Londres– era um de suas fontes. E havia rumores até de uma "rede de comissários de bordo" que traziam volumosos vinis importados de suas viagens frequentes só para Kid poder tocar suas novidades. Novamente, evoco processos impensáveis num mundo tão conectado como o de hoje –do qual Kid, não tenho a menor dúvida, sabia tirar partido. Fico imaginado o que ele teria baixado recentemente –antes de sofrer, há pouco mais de um mês, a doença que o matou.

    Qualquer que tenha sido esse seu último playlist, só posso ter a certeza de que ele, como sempre, deixou-se levar pelo mantra que deu título a uma das músicas de uma banda que ele mesmo me apresentou: "Stay Hungry", do Talking Heads. Traduzindo toscamente por "fique sempre faminto", essa era a atitude de Kid com relação ao pop: nunca fique satisfeito com o que você está ouvindo, procure sempre além.

    Uma receita, aliás, que cai como um oráculo para o que permeia nossas ondas tropicais... Ciente de que a música evolui em ciclos, é fácil imaginar Kid torcendo por uma nova virada do pop e se perguntando –para citar mais uma canção que ouvi pela primeira vez por obra desse visionário, esta dos Smiths (e que eu fiz questão que encerrasse um playlist que montei hoje em sua homenagem no Spotify, "Mestre Kid Vinil"): "How soon is now?".

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