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    Com texto agudo, peça é reconhecimento de luta por sobrevivência

    PALOMA FRANCA AMORIM
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    27/05/2017 02h20

    Jonatas Marques/Divulgação
    Cena de 'Naturaleza Muerta', em curtíssima temporada no Armazém da Vila Maria Zélia
    Cena de 'Naturaleza Muerta', em curtíssima temporada no Armazém da Vila Maria Zélia

    O filme peruano "O Leite da Amargura" (2009),de Claudia Llosa, conta a história de Fausta (Magaly Solier), uma jovem indígena que busca recursos para pagar o enterro da mãe.

    Fausta vive em uma região periférica de Lima e representa uma espécie de ponte entre os costumes pré-colombianos e a contemporaneidade; seus familiares e conhecidos se comunicam em quíchua, língua indígena, e mantêm uma relação próxima com os mitos populares.

    O "leite da amargura" seria uma dessas narrativas: quando uma criança é fruto de violência sexual, acaba contraindo através do sumo materno, a doença da "teta assustada", vírus do medo que a torna cronicamente temerosa diante de todas as situações da vida. O mito amplia os significados do estupro de mulheres indígenas e do processo de colonização secular dos povos originários na América Latina.

    Tomada pelo terror de ser, como a mãe, vítima de violência sexual, Fausta decide recorrer a um método ligado à cultura tradicional: introduz uma batata em sua vagina a fim de impedir a entrada violenta de qualquer corpo estranho ao seu desejo.

    A prática fere os princípios de assepsia e moralidade da medicina moderna, mas garante a proteção da moça em uma sociedade que se omite em relação ao estuprador, ao passo que avança ferozmente sobre a mulher que "se permite ser" estuprada.

    O espetáculo paulistano "Naturaleza Muerta", que tem brevíssima temporada neste fim de mês, traz índices estéticos semelhantes aos da obra; essa associação poética e política indica a persistência do tema da subjugação de gênero no contexto das artes cênicas latino-americanas.

    Quatro mulheres interpretadas pelas atrizes Juliana Sanches, Tatiana Ribeiro, Gabi Costa e Maria Carolina Dressler aguardam um jantar e a apresentação de uma banda enquanto são rondadas por uma presença masculina ameaçadora, nunca concretizada em cena, sugestão do terror e da dominação.

    Elas conversam sobre inquietações individuais por meio de signos em fragmentos e arquétipos radicalizados no decorrer do espetáculo; são bons exemplos dessa verticalização a dança catártica em meio ao público e os monólogos das personagens de Gabi Costa e Tatiana Ribeiro, também dramaturga da peça.

    As figuras interpretadas por Gabi e Tatiana trazem no bojo de seu discurso a questão de raça indelével à presença dos corpos negros das duas atrizes.

    A primeira apresenta uma perspectiva temática sobre o racismo narrando metaforicamente um paralelo entre sua vivência familiar e a estrutura de discriminação naturalizada na sociedade.

    A segunda trata da questão da maternidade compulsória. Nesse momento, a discussão racial torna-se base formal ambientando o conteúdo da maternidade.

    O debate é justaposto e atinge um nível político sem didatismos: em cena revela-se um corpo negro que não fala apenas de si, embora constitua de modo subjacente os temas específicos da racialização e do racismo.

    "Naturaleza Muerta" é um espetáculo teatral necessário aos debates atuais sobre o feminismo e a participação negra nas artes, não como reserva de mercado (o frisson da estação), mas como método potencialmente transformador de consciências.

    O texto pontiagudo, materializado por uma encenação justa, atravessa o espectador assim como o filme de Llosa. O que resta em nós é o reconhecimento da luta por sobrevivência e o sabor azedo do leite que talhou na boca.

    ALOMA FRANCA AMORIM é escritora e dramaturga.

    *

    NATURALEZA MUERTA
    QUANDO sáb. (27) às 20h, dom. (28) às 17h, e terça (30), às 20h
    ONDE Armazém da Vila Maria Zélia (r. Mário Costa, 13)
    QUANTO pague quanto quiser

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