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    Onda de abertura de museus e galerias põe Lisboa no mapa da especulação

    SILAS MARTÍ
    ENVIADO ESPECIAL A LISBOA

    28/05/2017 02h15

    Divulgação
    Vista do Maat, o Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, desenhado pela arquiteta britânica Amanda Levete em Lisboa
    Vista do Maat, o Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, desenhado por Amanda Levete em Lisboa

    No último andar de uma torre envidraçada, o Tejo a deslizar lá fora num azul cobalto àquela altura da tarde, uma galerista e um colecionador jogam pingue-pongue.

    O cenário da partida, momentos antes de um banquete numa capital portuguesa lúdica e quase pós-crise, é a sede da EDP, uma das maiores empresas de Portugal, que financiou a construção do espalhafatoso Maat, o Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia ali perto, e também a ArcoLisboa, uma feira de arte criada para aquecer um mercado que muitos já dizem estar em ebulição.

    Não espanta que o antes tímido cenário artístico português, azeitado agora pelo bom entrosamento entre instituições públicas e privadas, tenha vontade de se esbaldar enquanto a brisa sopra a favor de galerias e museus que abrem aos montes nas ruelas de prédios azulejados daqui.

    "Lisboa é um porto seguro quando há insegurança no resto da Europa", diz Pedro Gadanho, diretor do Maat, em sua sala à beira do rio. "É a última capital europeia a ser descoberta e que ainda tem espaço para onde crescer."

    Enquanto ele fala, transatlânticos apinhados de turistas deslizam diante da janela, adentrando uma Lisboa repaginada, que tem como mais novo cartão-postal as curvas exageradas do museu inaugurado no ano passado.

    Desenhado pela britânica Amanda Levete em forma de onda ou avalanche esbranquiçada, o Maat se tornou uma aposta da cidade, que acredita poder atingir com ele um "miniefeito Bilbao", nas palavras de Gadanho.

    "Tive a sorte de sair daqui quando toda a gente estava deprimida", conta o português que passou os últimos quatro anos à frente do departamento de arquitetura do MoMA, em Nova York. "Quando voltei, senti que a cidade estava em transformação, e que esse museu podia fazer parte dessa transformação."

    'LISBOOM'

    Outros, mais diretos, chamam essa metamorfose de "Lisboom". E, ao contrário das ruínas pós-industriais da cidade espanhola tornadas hype pelo Guggenheim de Frank Gehry, a capital portuguesa não depende só de um museu.

    Além do Maat, o Pritzker brasileiro Paulo Mendes da Rocha construiu o novo Museu Nacional dos Coches do outro lado da via que margeia o Tejo, e a dupla Aires Mateus, destaque da última Bienal de Arquitetura de Veneza, criou a gigantesca sede da EDP, blocos brancos vazados que filtram a luz fulgurante do rio.

    "Esse modelo começou em Bilbao, mas continua a ter importância", diz Sara Antónia Matos, à frente dos centros culturais ligados à prefeitura lisboeta, um deles desenhado pelo também ganhador do Pritzker Álvaro Siza, um dos maiores arquitetos do país.

    "Sabemos que a arquitetura tem essa influência, e a nossa está a ganhar relevo."

    Mesmo estruturas antigas, como a Cordoaria Nacional, uma fábrica de cordas do século 18, estão no olho do furacão. Durante a ArcoLisboa, feira que encerrou sua segunda edição na semana passada, o lugar se transforma numa plataforma de negócios, com galerias, em grande parte portuguesas e brasileiras, vendendo obras de artistas ainda estreantes em Portugal.

    "É um mercado pequeno, mas com muito potencial", diz Jaqueline Martins, dona da galeria paulistana que leva seu nome e integrante do comitê de seleção do evento comercial. "Tem uma vibe boa, mas com um pouco de exagero."

    De fato, a feira é um fenômeno só na superfície, já que o mercado local não sustenta toda a oferta. Mas a crise tende a ser superada com a migração em massa de endinheirados que estabelecem em Portugal uma base de operações para toda a Europa, entre eles galeristas que levam artistas para criar em Lisboa e depois vendem suas obras em Madri, Roma e outras capitais do continente.

    O italiano Matteo Consonni, por exemplo, abandonou a poderosa Franco Noero, galeria de Turim onde fez carreira, para abrir a Madragoa, minúscula –e charmosa– casa coberta de azulejos azuis e brancos no Bairro Alto.

    "Queríamos uma cidade com custos baixos", diz ele. "O mercado é mais lento, mas Lisboa é uma base perfeita."

    Ou bucólica. Os espanhóis da Maisterravalbuena abriram uma filial da galeria de Madri num beco cheio de marcenarias e oficinas mecânicas em Alvalade, distrito industrial agora invadido por espaços comerciais, residências artísticas e centros culturais.

    ERA DA ILUSÃO

    "É impossível sobreviver só com o mercado nacional, mas todo mundo está vindo morar em Lisboa", diz Nuno Centeno, da Murias Centeno, uma das maiores galerias da cidade. "Não é o fim da crise. É o início de uma nova era, que sabemos que pode ser também o início de uma ilusão."

    O lado B do "Lisboom", aliás, já dá as caras e preocupa os que veem uma capital antes pacata e melancólica se tornar uma "bolha que pode arrebentar", nas palavras da galerista portuguesa Vera Cortês, ou num playground vazio.

    "Sou muito crítico em relação a isso", diz Hugo Dinis, diretor do Museu Ateliê Júlio Pomar, uma instituição pública da cidade. "É muito estranha essa transformação. Lisboa de repente é um novo destino, mas não podemos virar uma Disney, ou uma Veneza."

    José Mário Brandão, um dos donos da galeria Graça Brandão, no entanto, vê os dois lados do fenômeno. "Não é nenhum paraíso, mas há uma sensação de segurança. Estão a abrir galerias, mas ainda não há mercado em Lisboa. Devemos ultrapassar a crise. Vejo que há luz no fim do túnel."

    O jornalista viajou a convite da ArcoLisboa.

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