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    CRÍTICA

    Fugacidade do tempo molda 'O Porto', 1º livro de Leda Cartum

    LAURA ERBER
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    30/05/2017 02h20

    O PORTO (ótimo)
    AUTOR Leda Cartum
    EDITORA Iluminuras
    QUANTO R$ 37 (107 págs.)

    *

    No espaço breve que banalmente chamamos parágrafo, às vezes uma experiência inesperada acontece, algo que excede tanto a sensação sincopada do verso quanto os enlaces de uma narração. Uma experiência que coloca em jogo a própria ideia de parágrafo como unidade discursiva.

    É raro que nossos escritores explorem as possibilidades da escrita breve sem que para isso sintam-se obrigados a aderir à postura e inflexão contestadoras das vanguardas.

    "O Porto", livro de estreia de Leda Cartum, convida a uma experiência incomum, aliando uma tradição da brevidade e do fragmento a uma pesquisa contemporânea em torno da relação entre poema e prosa, potencializando a ambivalência de uma escrita íntima que se dobra em reflexividade sobre a fuga do tempo e dos temas perseguidos.

    O porto a que se referem o título e a imagem da capa -singelo suvenir do avô da autora que encobre a violência da viagem- é uma imagem sempre em perda de substância, perseguida pela escrita que também se deixa perseguir pela memória de uma terceira pessoa nunca nomeada.

    Cada página do livro é o lugar de abismo dessa voz que não para de se aproximar do ponto (do porto?) que alucina sua pesquisa e seu desejo.

    Não exatamente um retorno à origem ou à figura, mas ao lugar de fabricação de imagens movediças que se movem com o sujeito, uma pesquisa sobre o tempo da memória, só que não mais uma memória localizada no passado de um sujeito, mas algo que flutuaria como flocos no ar, eventualmente grudada nos cabelos de alguém, no concreto dos dias, na sua luz.

    Assim o mundo sublunar oferece pequenas âncoras ou anzóis, sapatos de desconhecidos, notas de dinheiro, num pequeno comércio de ritmos.

    Schlegel sustentava que um fragmento tinha de ser uma pequena obra de arte perfeita e separada do mundo circundante; Cartum ao mesmo tempo se apropria e refuta o ideal romântico, pois faz com que cada página seja ao mesmo tempo autônoma e uma espécie de documento de seu inacabamento, de nossa ferida e distância em relação às obras primas.

    Este pequeno livro de difícil classificação nos atrai pelo modo como encena uma voz sem rosto, esquiva mas generosa, capaz de acessar uma intimidade diferente da que estamos acostumados a ver.

    Não há exibicionismo da vida pessoal; a confissão foi transformada numa operação mais arriscada e delicada, tornou-se a confissão da intimidade do sujeito na sua relação com o tempo. Com as perdas, com as palavras que faltam e que por isso se repetem, uma vez que "não havia nos tempos idos mais do que os mesmos dias de hoje".

    Essa vertigem do mesmo é que a autora tratará de nomear ao longo do livro: "Aprende a chamar tudo por um nome. Vai -e diz: é assim".

    O Porto
    Leda Cartum
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    O livro é também sobre a difícil e misteriosa busca da instalação da memória na escrita e da intimidade na exterioridade de uma voz, que parece sussurrar.

    É um livro que fala baixo, mas cuja voz surpreende e custa a desaparecer, mesmo depois de terminada a leitura desse possível-impossível porto, cada vez mais próximo de se tornar uma imagem do pensamento e passar a nos acompanhar como um resto de sonho sussurrado.

    LAURA ERBER é escritora e professora do Departamento de Teoria do Teatro da Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro)

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