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    Crítica

    'Diário da Cadeia' atinge a forma própria de lidar com a política

    JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    03/06/2017 02h15

    Heuler Andrey - 20.out.2016/AFP
    Após noite na carceragem da Polícia Federal, Eduardo Cunha chega ao IML de Curitiba
    Após noite na carceragem da Polícia Federal, Eduardo Cunha chega ao IML de Curitiba

    DIÁRIO DA CADEIA (muito bom)
    QUANTO: R$ 34,90 (192 PÁGS.)
    AUTOR: Eduardo Cunha (Pseudônimo)
    EDITORA: Record

    *

    S.A: Sociedade Anônima. Em português de dicionário: "forma jurídica de constituição de empresas na qual o capital social não se encontra atribuído a um nome em específico". Definição técnica tão exata que se torna suspeita. Imagine-se o que pode medrar à sombra do anonimato.

    "Diário da Cadeia", de Eduardo Cunha (pseudônimo), esclarece o alcance da maracutaia, pois, a seu modo, o pseudônimo é uma S.A. ficcional. A sigla sugere: "sem assinatura".

    O diário da cadeia apresenta duas narrativas de desintegração e sua explicitude torna a caricatura a forma própria de lidar com a política brasileira –recurso adotado no recente filme de Gustavo Acioli, "Mulheres no Poder".

    De um lado, a exposição dos subterrâneos de Brasília ameaça dar xeque-mate no tabuleiro bem armado do saque do Estado traduzido em abismo para o futuro, assim como da corrupção travestida de governabilidade.

    O pseudônimo condena os holofotes, repetindo como um mantra: "tornar crime o que não era crime antes".

    De outro, estiola-se a personalidade de Eduardo Cunha.

    No princípio, ele acredita tudo controlar: busca câmeras escondidas de um reality show; revela segredos como se armasse pegadinhas em programa de auditório; ministra conselhos como se fosse um pastor cobrando o dízimo com as muitas mãos no bolso; escreve um livro-bomba, Impeachment, para destruir reputações; organiza arquivos como se não houvesse ontem.

    Um arremedo de lucidez e lógica colore seu texto, embora a crise mais séria do ex-deputado remeta ao impeachment imposto à crase. Dessa singela fusão de preposição e artigo, o pseudônimo foge como o diabo da cruz. Logo Cunha, o mandarim de criativos conluios milionários.

    Diário da Cadeia (Obra de Ficção)
    Eduardo Cunha (Pseudônimo)
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    Na primeira entrada do "Diário", a confiança é inabalável; não chega a mover grades, mas anuncia uma determinação férrea, porém modesta: "Jesus também passou pelo que estou passando e depois deu a volta por cima para cuidar do ser humano".

    Ninguém ignora, o povo merece respeito. Na sequência, comete-se o ato falho que bem mereceria uma pena severa: "O que está sendo posto em cheque agora, nessa nação abençoada por Deus, é o meu equilíbrio. Mas é ingênuo colocar em cheque o que eu sempre tiver de melhor".

    TODO-PODEROSO

    Colocar o "cheque" acima de tudo: eis o pecado original do político todo-poderoso de plantão. No final do "Diário", a escrita é puro delírio. Deus, misericordioso, rompe o silêncio obstinado que começou no Antigo Testamento e fala com Cunha: "Agora ao soar da última trombeta, você é o meu general, Eduardo".

    Wilhelm Steinitz, inventor do modo moderno de jogar xadrez, enlouqueceu e passou seu final de partida desafiando a Deus. Ardiloso, o Senhor impediu o campeão mundial de tocar nas peças, que produziam violentos choques.

    Grande mestre da modernização do arcaico, o pseudônimo perde o jogo e ainda assim recebe gordos cheques. Fartos como os bois no pasto do senhor campeão mundial de delações.

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