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    Crítica

    Pretensioso, 'Neve Negra' se ampara em volteios

    CÁSSIO STARLING CARLOS
    CRÍTICO DA FOLHA

    08/06/2017 02h05

    Divulgação
    Em 'Neve Negra', Ricardo Darín interpreta Salvador, homem que vive em cabana na Patagônia
    Em 'Neve Negra', Ricardo Darín interpreta Salvador, homem que vive em cabana na Patagônia

    NEVE NEGRA (regular)
    ELENCO: Laia Costa, Ricardo Darín, Dolores Fonzi
    PRODUÇÃO: Argentina/Espanha, 2017, 14 anos
    DIREÇÃO: Martin Hodara
    Veja salas e horários de exibição.

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    "Neve Negra" é um caso exemplar daqueles filmes que nosso público com síndrome de inferioridade enche a boca para afirmar que a Argentina faz um cinema distinto e sofisticado ao qual nenhum cineasta brasileiro consegue se equiparar (o mesmo público, aliás, que descarta a produção nacional sem ver).

    O segundo longa dirigido por Martin Hodara reúne um conjunto de sinais que confunde até olhares treinados, aquela mistura de bom nível de recursos, de efeitos embelezantes e de pretensões narrativas a que os críticos gostamos de chamar pejorativamente de "cinema de qualidade".

    Se não fosse falado em espanhol, "Neve Negra" poderia ser um corriqueiro drama selvagem passado em alguma locação gelada da América do Norte, dos Alpes, da Escandinávia ou da Sibéria.

    Ou seja, ao pretender ser uma produção comparável no quesito bom acabamento a tantas outras do cinema global, "Neve Negra" acaba sendo igual a nada.

    A história é ambientada num cenário impactante da Patagônia, no alto de uma montanha nevada. Ali, numa cabana com ares de mal-assombrada e isolado do mundo vive Salvador, nome de significados bastante óbvios.

    O personagem é interpretado por Ricardo Darín, ator cuja onipresença vem sendo, desde "Nove Rainhas" (2000), um elemento que agrega autenticidade aos filmes argentinos, a ponto de suas boas qualidades não mais se distinguirem da fórmula de cinema para exportação (como se viu, há pouco, em "Kóblic").

    A chegada de seu irmão Marcos e da cunhada Laura instaura um conflito do tipo Caim versus Abel, paradigma da disputa trágica no âmbito da família, mas também tique dramatúrgico usado para enobrecer tramas.

    O exterior inóspito e o interior despojado são mostrados com uma fotografia focalizada em fazer tudo parecer estetizado, da carcaça ainda quente de um animal às marcas de sangue na neve. Trata-se de um recurso que lança sobre o olhar do espectador uma névoa de beleza mesmo quando não há necessidade alguma disso.

    Trailer 'Neve Negra'

    A condensação de signos de qualidade nas camadas externas de "Neve Negra" é reforçada pela estrutura narrativa repleta de volteios, algo que muitos confundem com "complexidade" ou "inteligência".

    Há diversas cenas, por exemplo, com transições sem cortes entre presente e passado, algo que pretende manifestar os traumas da relação, mostrar feridas não cicatrizadas.

    Mas Hodara não se contenta apenas em utilizar esses recursos estilísticos, precisa também enfatizá-los, obriga-nos a admirá-los, assim como o ator que interpreta dois tons acima do necessário para que o público o aplauda.

    Quando, ao final, a complicação da trama é desfeita e descobrimos que todo aquele mistério não encobria grande coisa, ficamos na mesma situação do turista que faz reserva para degustar um formidável "asado", mas o que chega à mesa não passa de churrasquinho de gato.

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