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    'Pessoas Brutas' supera o pieguismo com debate da marginalidade urbana

    VALMIR SANTOS
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    08/06/2017 02h50

    PESSOAS BRUTAS (bom)
    QUANDO: qua. a sex., às 21h; até 28/7
    ONDE: Espaço dos Satyros, Pça. Franklin Roosevelt, 214, tel. (11) 3258-6345
    QUANTO: R$ 20

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    Signo de ascensão na base da pirâmide social em Plínio Marcos ("Dois Perdidos Numa Noite Suja") e de digressão existencial em Samuel Beckett ("Esperando Godot"), o sapato também adquire função dramatúrgica no novo trabalho da Companhia de Teatro Os Satyros.

    Um par de tênis laranja passa o espetáculo todo largado no chão de "Pessoas Brutas". Ninguém estabelece relação direta com ele, a não ser simbólica: é objeto do desejo de um ex-presidiário no assalto a um vendedor de sapatos.

    Clichê da marginalidade urbana, essa cena de abertura é logo interrompida para dar lugar a outras realidades: as paralelas.

    Variações da dependência -química, psicológica, afetiva, material- motivam o texto a quatro mãos do diretor Rodolfo García Vázquez e do ator Ivam Cabral.

    Doze personagens meditam com seus botões ou patinam nos sofrimentos que atritam e compartilham uns com os outros. O ansiolítico, a cocaína, o dinheiro, o sexo, a fé e a arte são algumas das sujeições.

    Em meio às perturbações sociais e às fugas ("... quem tiver de sapato não sobra", já exclamava "O Bandido da Luz Vermelha" de Rogério Sganzerla), surge o contraponto da tentativa de redenção pelo outro.

    A dramaturgia assume o caminho da alteridade e supera o pieguismo ao fazer essa gente cinza (dominante no figurino e na maquiagem) confluir para a sessão presencial da comunidade virtual "Quem Quer Amigo?".

    O apelo à autoajuda, definitivamente, não os isenta da dor do mundo. A noite culmina em assassinato arquitetado por dois jovens participantes do mesmo encontro. Eles sequestram a filha de um doleiro investigado pela Lava Jato, sendo vítima e pai permanentemente ocultos.

    Aludir à operação midiática soa forçado. O político é de natureza íntima nesse drama. Múltiplas situações da narrativa bastam para o espectador inferir os impasses éticos e heroicos em xeque.

    Como boa parte das atrizes e dos atores é familiarizada com a Trilogia das Pessoas d'Os Satyros (desde 2014, "Perfeitas", "Sublimes" e agora "Brutas"), o conjunto equaliza o desnível de um ou outro intérprete novato.

    Sabrina Denobile e Robson Catalunha surgem meticulosos em seus tipos estranháveis, a recepcionista bilíngue de hotel e o contador evangélico de um escritório onde a corrupção faz sombra.

    A encenação de Vásquez mapeia milimetricamente as potencialidades da sala e do elenco. Há melancolia e método nesse mosaico de abandonos, como num samba de Adoniran Barbosa sob a chuva de serpentina e de esperança.

    Uma das cenas permite divisar a escala do humano na mágica e singela solução para a descida de um piano pela janela de um edifício.

    Não faltam ainda humor e autocrítica sobre os limites da codependência do imaginário e da concretude da praça Franklin Roosevelt que Os Satyros habitam e orbitam.

    Lenise Pinheiro/Folhapress
    Julia Bobrow (sentada, à frente) e Eduardo Chagas (deitado) em cena de 'Pessoas Brutas
    Julia Bobrow (sentada, à frente) e Eduardo Chagas (deitado) em cena de 'Pessoas Brutas'
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