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    Análise

    Abismo entre festivais de cinema resume descaso à nossa memória

    INÁCIO ARAUJO
    DE SÃO PAULO

    20/06/2017 14h16

    Divulgação
    Catherine Deneuve em cena do filme "A Bela da Tarde", de Luis Buñuel. [FSP-Ilustrada-Acontece-16.05.96]*** NÃO UTILIZAR SEM ANTES CHECAR CRÉDITO E LEGENDA***
    Catherine Deneuve em cena do filme "A Bela da Tarde", de Luis Buñuel, que estará no Cinema Ritrovato

    São dois eventos bem próximos: tanto o CineOP, que começa nesta quarta (21) em Ouro Preto, Minas, como o "Cinema Ritrovato", que se abre no sábado (24) em Bolonha, Itália, tratam do mesmo assunto: a memória, a história e a preservação do audiovisual.

    Bem outro é o andamento, no entanto. Em Bolonha, um dos principais centros europeus de restauro de filmes, são muitas e fabulosas as propostas: quatro filmes do incrível comediante e cineasta Buster Keaton, um "Calígula" de 1917, "Belle de Jour" (1967), de Buñuel, "Johnny Guitar" (1954), de Nicholas Ray, "A Primeira Noite de um Homem" (1967), de Mike Nichols etc.

    O etc., no caso, daria para encher uma página. Há diretores diversos, como Jean Vigo e Renoir, George Romero e Max Ophuls. Haverá ainda uma seção dedicada aos filmes produzidos por Carl Laemmle Jr. para a Universal, essenciais para o conhecimento da década de 1930. Uma outra será dedicada aos filmes de 1997.

    E, no entanto, nessa mostra conhecida como "Cannes dos cinéfilos", a descoberta do ano prometida pela organização é a dos filmes de William K. Howard (1893-1954). Cineasta esquecido, Howard teve a carreira prejudicada por problemas pessoais (o alcoolismo entre eles), o que não impediu o grande cameraman James Wong Howe de considerá-lo o diretor mais criativo com quem trabalhou. E olhe que Howe trabalhou com gente como Raoul Walsh, Samuel Fuller, Howard Hawks, Martin Ritt, Fritz Lang —a papa fina de Hollywood.

    Os problemas de Ouro Preto são de outra ordem. Nesta 12ª edição, o evento planejou ter como centro a entrega do Plano Nacional de Preservação Audiovisual (PNPA) à secretária do Audiovisual do MinC, Mariana Ribas. A ideia era que em seguida o governo propusesse uma lei federal fundada sobre o documento criado pela Associação Brasileira de Preservação Audiovisual.

    Aí começam os problemas: para começo de conversa, com as mudanças no MinC é bem improvável que a secretária do Audiovisual permaneça no cargo. Trata-se de uma área em que os gastos superam o prestígio imediato que possa gerar sua execução, em primeiro lugar.

    A única esperança para os preservacionistas talvez venha de um paradoxo: o governo atual não aprecia cineastas desde o episódio de Cannes-2016, quando a equipe de "Aquarius" fez uma manifestação contra ele de repercussão bem mais que cinematográfica. Tirar dinheiro da produção para a preservação não seria, afinal, uma bela forma de vingança?

    O plano, diga-se, é ambicioso, mas está longe de ser impraticável: basicamente, diagnostica desde a "infraestrutura precária" das instituições detentoras de acervo até a necessidade de "uma política nacional" de preservação. Também propõe medidas que corrijam a legislação "inadequada e desatualizada" sobre o assunto e implementação do PNAP como forma de fortalecer as instituições que zelam pelo patrimônio audiovisual.

    Em Ouro Preto são 13 longas, entre eles "Um É Pouco, Dois É Bom", de 1970, primeiro longa assinado por um diretor negro (Odilon Lopez) e o restauro da comédia "É um Caso de Polícia" (1959), de Carla Civelli.

    O abismo entre as duas mostras dá conta da distância entre a atenção que europeus, americanos e asiáticos dedicam à preservação da memória filmada e a desatenção que merece no Brasil.

    As causas do desinteresse podem ser inúmeras: da rejeição dos brasileiros por imagens produzidas no Brasil à dificuldade para reunir um acervo em estado de dispersão. Mas é, sobretudo, dinheiro o que falta.

    Nesse fronte, os preservacionistas nunca encontraram grande apoio nem entre os cineastas: dinheiro de restauro é dinheiro que poderia ir para a produção (ainda que o digital tenha tornado o restauro de filmes mais prático e econômico).

    Por isso mesmo Hernani Heffner, curador da Cinemateca do MAM (Rio), afirma no texto do catálogo do CineOP que "o Plano em si é apenas um conjunto de ideias (...) não garantem uma execução automática, muito pelo contrário".

    Ou seja, o belo plano, que diagnostica e lista ações necessárias à preservação desse patrimônio corre o risco de virar um belo exercício retórico se ao menos em parte não for sustentado pelo Estado (pois a preservação é questão de Estado, não de governo).

    Nem por isso será bela perda de tempo. Sua simples existência aponta um crescimento do interesse pelas imagens do passado, que começou pelas primeiras cinematecas e evoluiu com o reconhecimento da importância dessas imagens pela universidade.

    Não por acaso, o tema central do encontro gira em torno da questão "Quem Conta a História?". A importância das imagens e de sua preservação diz respeito bem menos ao passado do que à cultura que se desenvolve, espera-se, no presente.

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