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    Livro reúne sonhos que alemães tiveram durante ascensão nazista

    MAURÍCIO MEIRELES
    DE SÃO PAULO

    24/06/2017 02h50

    Reprodução
    Vista de portão do campo de concentração de Auschwitz, na Alemanha, no qual se lê "Arbeit macht frei" (O Trabalho Liberta], slogan nazista.
    Vista de portão do campo de concentração de Auschwitz, na Alemanha, no qual se lê "Arbeit macht frei" (O Trabalho Liberta), slogan nazista.

    Imagine que houvesse um sismógrafo para detectar o totalitarismo. As placas tectônicas movem-se nos subterrâneos, e o aparelho risca suas linhas de alerta como se dissesse que a catástrofe vem aí.

    É essa a impressão despertada por "Sonhos do Terceiro Reich", trabalho da jornalista e ensaísta alemã Charlotte Beradt que chega agora às livrarias pela Três Estrelas, selo editorial do Grupo Folha.

    De 1933, quando Hitler chega ao poder, a 1939, quando começa a Segunda Guerra, Beradt dedicou-se a recolher sonhos que a costureira, o vizinho, o leiteiro, a tia, amigos –300 pessoas no total– tinham com o regime.

    Escondeu as notas na biblioteca porque estava ciente de que o material era subversivo. Beradt também os enviou a endereços em diversos países, prevendo que seria obrigada a fugir –era judia e ligada ao partido comunista.

    São um surpreendente relato sobre os efeitos de um regime totalitário na psique dos cidadãos. "O líder nazista que afirmou que só durante o sono se tem vida privada subestimou as possibilidades do Terceiro Reich", escreve ela.

    "O sonho se mostra um lugar de resistência. As pessoas inventam jeitos de dizer não. O mais louco é como surgem exemplos de como a resistência é inútil", diz o psicanalista Christian Dunker, que assina o prefácio da nova edição.

    A inutilidade de resistir aparece, por exemplo, em sonhos sobre a vigilância.

    Em 1934, um médico sonhou que seu apartamento e os de vizinhos perdiam as paredes. Um megafone dizia: "De acordo com o edital sobre a eliminação das paredes..."

    Há tentativas de resistência. Um ano antes, uma faxineira já havia sonhado falar russo –língua que não conhecia– para que ela mesma não se entendesse. Um homem sonhou apenas com formas geométricas abstratas porque sentia ser "proibido sonhar".

    Os sonhadores também revelam a vergonha de não conseguir se insurgir ao perceber que não é seguro. Muitos relatam sentimentos de humilhação –ou de culpa ao cometer covardias morais.

    Vale ressaltar o caráter premonitório de sonhos, que apontava uma realidade que só se tornaria mais clara com a evolução do nazismo. "Na história da psicanálise foi discutido se sonhos eram telepáticos, premonitórios. Eles projetam para o futuro uma realização do desejo. Nos casos do livro, estavam um passo à frente da história", diz Dunker.

    Muitas das histórias revelam aniquilação da individualidade ante o coletivismo de um sistema totalitário. Em um dos mais explícitos, uma mulher sonha que as palavras "Senhor" e "eu" são proibidas.

    Sonhos no Terceiro Reich
    Charlotte Beradt
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    Para Dunker, é como se houvesse um "colaboracionismo" psíquico. Quase no fim do trabalho de Beradt, ela relata sonhos em momentos quando resistir aos nazistas seria ainda mais pedregoso. E um homem sonha ser amigo de Hitler.

    *

    AUTORA Charlotte Beradt
    TRADUÇÃO Silvia Bittencourt
    EDITORA Três Estrelas
    QUANTO R$ 34,90 (184 págs.)

    Edição impressa

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