• Ilustrada

    Monday, 20-May-2024 12:26:52 -03

    CRÍTICA

    Argentina traz na essência a horda que invade o conforto dos lares

    JOCA REINERS TERRON
    ESPECIAL PARA FOLHA

    03/07/2017 02h00

    Awakening/Getty Images
    Mariana Enriquez em festival literário em Veneza
    Mariana Enriquez em festival literário em Veneza

    AS COISAS QUE PERDEMOS NO FOGO (ótimo)
    AUTORA Mariana Enriquez
    TRADUÇÃO José Geraldo Couto
    EDITORA Intrínseca
    QUANTO R$ 39,90 (192 págs.); R$ 24,90 (e-book)

    *

    Nos 12 contos de "As Coisas que Perdemos no Fogo", Mariana Enriquez foge dos pavores causados pelas crenças anímicas exploradas pelo terror clássico, explorando a instabilidade sociopolítica e econômica que assombra a classe média na atualidade.

    A ficção contemporânea pouco tem alcançado diante das quimeras da realidade atual, mas o medo que grassa por aí é combustível para inflamar a imaginação.

    Na história que abre a coletânea, "O Menino Sujo", uma designer regressa ao nobre casarão da família no decadente bairro de Constitución.

    Pouco importa se os arredores são perigosos, ela quer apenas respirar ares aristocráticos nas sombras da antiga residência dos avós. O que acaba por lhe subir às narinas, porém, é a fumaça química do crack.

    Na calçada do outro lado da rua vivem uma viciada grávida e seu filho. A narradora convive com travestis, como a cabeleireira umbandista Lala, uma falsa brasileira, até que certo dia surge na rua o cadáver de um menino decapitado. Sacrifício satânico ou vingança de traficantes? A viciada e seu filho desaparecem, e então começa o pesadelo.

    Por meio de lendas urbanas, causos e santos populares como São Morte e o Gauchito Gil (um desertor da província de Rosário, que após ser assassinado passou a operar milagres), Enriquez reacende no leitor algumas fobias ancestrais, como de bruxaria, fantasmas ou do desconhecido.

    É um recurso hábil que não passa de isca para estabelecer o clima de tensão inicial, logo conduzido a aspectos grotescos da realidade.

    No conto que dá título ao livro, por exemplo, garotas se reúnem para praticar a famigerada brincadeira do copo.

    O que surge é uma mensagem inesperada de um terror concreto, promovido pela tortura contra opositores durante a ditadura argentina, nada que possa ser revelado aqui sem comprometer a leitura.

    As Coisas Que Perdemos No Fogo
    Mariana Enriquez
    l
    Comprar

    Pesadelos da história, neuroses, distúrbios hormonais, drogas, ciúmes, vinganças e o vulto da horda descamisada que invade o conforto açucarado dos lares, habitando as ruas, essa é a essência dos contos da escritora argentina.

    Ameaçadas pelo reflexo social dos miseráveis e sem-teto, suas personagens —quase sempre garotas adolescentes– veem diante de si o reflexo distorcido da sociedade, o outro lado da moeda ou o mero flash do futuro que as aguarda. Nada pode soar mais apavorante.

    JOCA REINERS TERRON é autor de "Noite Dentro da Noite" (Companhia das Letras).

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024