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    CRÍTICA

    Umberto Eco ataca comunicação virtual em livro póstumo

    MANUEL DA COSTA PINTO
    COLUNISTA DA FOLHA

    08/07/2017 02h05

    PAPE SATÀN ALEPPE (muito bom)
    QUANTO R$ 59,90 (420 págs.)
    AUTOR Umberto Eco
    EDITORA Record
    TRADUÇÃO Eliana Aguiar

    *

    Os italianos utilizam o neologismo "tuttologo" para definir intelectuais e jornalista que têm a capacidade de falar de qualquer assunto com desenvoltura, porém com superficialidade em todos.

    Não é o caso de Umberto Eco (1932-2016), "tuttologo" cujo livro póstumo "Pape Satàn Aleppe" transpira erudição até mesmo em assuntos corriqueiros –como os vícios de linguagem de seus conterrâneos ou os vícios de alcova do ex-premiê Silvio Berlusconi (num texto que enumera expressões latinas para práticas sexuais como "more ferino", "cunnilingus" e "delectatio morosa").

    Em se tratando de semiólogo e medievalista que, em "O Nome da Rosa" levou intrincados enigmas retóricos para o romance policial, vale dizer que o título "Pape Satàn Aleppe" veio de um verso do "Inferno", de Dante Alighieri.

    No prefácio, Eco diz que os diferentes intérpretes da "Divina Comédia" não chegaram a consenso sobre a obscura frase, dita por Pluto na entrada do inferno dantesco. E que, portanto, "estas palavras confundem as ideias e podem se prestar a qualquer diabrura" –como as que Eco comete ao escrever, sempre com humor, sobre racismo e fundamentalismo, mídia e pornografia na internet, fofocas políticas ou o impacto da longevidade contemporânea.

    Edições críticas de Dante sugerem que a tal frase pode significar tanto "Oh Satanás, ai de mim!" quanto "Pare, esta é a porta de Satanás!". Fato é que o demônio contra o qual Eco se insurge (ou o inferno cujos círculos percorre) está bem explicado no subtítulo do livro: "Crônicas de uma Sociedade Líquida".

    A expressão foi cunhada pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman e permite a Eco identificar a crise das antigas autoridades (religiões, comunidades, Estados nacionais, ideologias) que levou à "liquefação" de todas as referências e explicações do mundo, lançando os indivíduos na "bulimia sem escopo" da sociedade de consumo.

    O livro agrupa tematicamente crônicas escritas entre 2000 e 2015 para "La Bustina di Minerva", coluna na revista "L'Espresso" que Eco criou em 1985. Algumas são obscuras para quem não conhece a vida política e as figuras midiáticas da Itália. Outras partem de fatos jornalísticos ou da publicação de livros para discutir o relativismo filosófico de Nietzsche a Richard Rorty ou "o terceiro segredo de Fátima" e sua exegese pelo cardeal Ratzinger –então futuro papa Bento 16.

    Pape Satàn Aleppe
    Umberto Eco
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    Entre a crônica e o ensaio, "Pape Satàn Aleppe" satiriza ferozmente (e profeticamente) os costumes em tempos de comunicação virtual. "Dar Tchauzinho" (2002), por exemplo, descreve a obsessão de ser visto ou falado em termos que cabem perfeitamente aos energúmenos do Facebook (que só seria criado dois anos depois) ou do Twitter (tema da crônica "Tuíto, Logo Existo").

    Não por acaso, ao final desse livro em que afirma que "a aparição na telinha é o único substituto da transcendência", Eco colocou o texto que esclarece sua célebre declaração sobre "os imbecis da web" –a saber, que o antigo "idiota da aldeia", que antes esbravejava no boteco da esquina, hoje vocifera nas redes sociais.

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