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    Crítica

    Obra alimenta questões sobre sanidade de Joyce de modo instigante

    MARCELO TÁPIA
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    10/07/2017 02h00

    JOYCE ERA LOUCO? (ótimo)
    QUANTO: R$ 45 (240 PÁGS.)
    EDITORA: ATÊLIE EDITORIAL

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    A pergunta-título do livro de Donaldo Schüler, "Joyce Era Louco?", leva-me a outra, aparentemente menos plausível: "Joyce era Deus?".

    Louco é pouco no caso do escritor que criou "Ulysses", considerado por muitos o mais importante romance do século passado.

    Louco é pouco: Joyce não só quis abarcar o mundo em um dia como também toda a criação em uma noite, por meio de sua radical (e onírica) obra "Finnegans Wake", escrita com palavras inventadas em mais de 60 idiomas, que organiza uma constelação de sentidos sobrepostos.

    Jamais bastaria ser servo da loucura para construir um universo de infinitos desdobramentos e, mesmo assim, dinamicamente harmonioso (ainda que simultaneamente dissonante) em seu eternamente expansivo conjunto.

    Se o escritor acreditava ser um deus, suas realizações o levaram muito a sério.

    Donaldo Schüler-realizador da proeza de traduzir ao português toda a "proesia" de "Finnegans Wake"- dispôs-se a abordar as ideias do célebre psicanalista Jacques Lacan (que, em 1975, iniciou uma série de dez lições dedicadas ao escritor) e as discussões nele baseadas acerca da obra joyciana.

    "O psicanalista atribui a estonteante inventividade de Joyce à mania e lembra que o termo deve ser entendido em sentido psiquiátrico", diz Schüler, para quem Lacan se referiria às características dos maníacos tais como eram identificadas desde o século 19: "sensibilidade, ilusões, exaltação, rupturas, ideias soltas, fugazes".

    Esse seria, portanto, o terreno fértil para a ocorrência singular -que tem motivado, ao longo do tempo, tantos estudos, discussões e leituras contínuas- da avalanche inventiva chamada Joyce.

    Para Lacan, nas palavras de Schüler, Joyce sai de seu "corpo castigado para arquitetar o corpo da escrita, hostil a submissões"; suas "invenções delirantes" projetariam voos inesperados.

    Como o grande voo a que se lança Stephen Dedalus, personagem de Joyce construído à sua imagem, no romance "O Retrato do Artista Quando Jovem": em vez de seguir o sacerdócio, como se esperava dele no colégio jesuíta em que era castigado e aprisionado ao "chão", opta pela devoção à arte, que lhe dará as asas necessárias à sua visão de altura.

    Joyce Era Louco?
    Donaldo Schuler
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    Sabe-se que Jung teria dito a Joyce, quando atendia a Lucia, filha do escritor, considerada esquizofrênica: "Ali onde você nada ela se
    afoga".

    Busque-se entendê-la como loucura ou "divina" excepcionalidade, nada superará a interrogação associada à obra do irlandês, que nadava de braçada nas águas da criação. O influxo reflexivo trazido pela leitura de "Joyce Era Louco?" alimenta questões perpétuas de modo particularmente instigante.

    MARCELO TÁPIA, doutor em teoria literária e literatura comparada pela USP, é poeta e autor do recém-publicado "Refusões - Poesia 2017-1982" (editora Perspectiva)

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