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    Convidado da Flip, Paul Beatty lança sátira cáustica sobre relações raciais

    MAURÍCIO MEIRELES
    DE SÃO PAULO

    15/07/2017 02h00 - Atualizado às 20h13
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    Alex Welsh/The New York Times
    *** ALTA*** FILE Paul Beatty, author of O The Sellout,O in New York, Feb. 15, 2015. OThe Sellout,O a satire that wrenches humor out of subjects like slavery, police violence and segregation, won the National Book Critics Circle Award for fiction on March 17, 2016. (Alex Welsh/The New York Times) ORG XMIT: XNYT206 ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    O escritor Paul Beatty em Nova York, em 2015

    Há um sorrisinho endiabrado em cada página de "O Vendido" -e o leitor vai rir, às vezes por diversão, outras de nervoso. O livro rendeu a Paul Beatty, um dos convidados da Flip deste ano, o Man Booker Prize de 2016, o principal prêmio literário do mundo anglófono.

    Ele foi o primeiro americano a levar o troféu, depois que o Booker passou a permitir que qualquer autor de língua inglesa concorresse, e não só aqueles dos países da comunidade britânica.

    A vitória ajudou de novo a revelar para o mundo o trabalho da Oneworld, editora independente de Londres que o publicou -e que já havia levado Marlon James, também na Flip, ao mesmo troféu um ano antes. Como o romance de James, "O Vendido" foi rejeitado 18 vezes até ser publicado.

    "Mesmo a Oneworld rejeitou!", ri Beatty, em entrevista à Folha por telefone. "Voltaram atrás depois de receber a dica de um crítico literário de um grande jornal."

    Uma explicação deve ser o estranhamento que o romance provoca no leitor, ao fazer piada com o que, pelo menos no Brasil, não é comum.

    "O Vendido" é a história de um homem, morador de uma cidadezinha próxima de Los Angeles, que, por diversas circunstâncias, acaba virando dono de um escravo idoso, Hominy -ex-ator da série "Os Batutinhas".

    Hominy vira escravo por vontade própria, diz que seu desejo também é "liberdade". Para agradá-lo em seu aniversário, seu "sinhô" segrega os assentos de um ônibus -e o escravo sente-se feliz ao ceder o lugar para um branco.

    É pouco? O leitor também vai corar em cenas como uma na qual o autor mostra um macaco chamado Baraka -em referência ao ex-presidente Barack Obama.

    O protagonista, mais à frente, instala a segregação na escola de sua cidade. E os brancos são proibidos de estudar nela. Não é para ficar confuso?

    Por tudo isso, nas primeiras páginas encontramos o personagem na Suprema Corte respondendo a um processo por violar a 13ª emenda da Constituição americana, aquela que acabou com a escravidão no país.

    "Não escolhi esse estilo. Eu escrevo como escrevo. Não penso no livro como uma sátira, como as pessoas definem. Acho sátira um termo limitador", diz Beatty, antes de pedir para anotar "Lima Barreto" ao ouvir que o homenageado da Flip também era um satirista.

    LINGUAGEM

    O autor não viu risco em fazer graça de um assunto tão delicado?

    "Sabia que alguns leitores podiam não gostar, mas não tenho nada a ver com isso. Não digo, no romance, que a escravidão é divertida, mas que tais e tais aspectos, ou tal jeito de olhar, pode ser engraçado. Mas o livro não é para todo mundo. Não foi escrito para ser", diz Beatty.

    A explosiva palavra "nigger", considerada muito racista no Estados Unidos, espalha-se aos montes pelas páginas de "O Vendido". Na tradução brasileira, ela é "crioulo".

    Em um momento de grande articulação da militância identitária -no campo racial e de gênero-, com grupos tão reativos ao uso da linguagem, como é fazer piada com o assunto?

    "Até onde eu sei, nenhuma palavra foi proibida por lei. Embora haja quem gostaria de fazê-lo", ironiza. "A linguagem, para mim, é o mais importante. Não a utilizo para chocar ou irritar. Só quero contar uma história e usar as palavras certas."

    Uma das piadas com o assunto é um intelectual negro que resolve reescrever "Huckleberry Finn", clássico de Mark Twain marcado pelo jargão racista. O personagem troca "escravo" por "voluntário de pele escura".

    Ainda no assunto da linguagem, conto a Beatty que, em reportagem da "Ilustrada" de duas semanas atrás, mandamos um trecho do seu livro a um "leitor sensível", membro de uma minoria contratado por editores internacionais para dizer se uma obra é ofensiva.

    "Isso é um lixo. Todos têm tanto medo de tudo...", diz.

    Em vez de contratarem pessoas de diferentes cores ou orientação sexual, por exemplo, os editores usariam os leitores sensíveis como forma de manter seu poder, afirma.

    "Os editores não vão contratar quem é diferente deles, mesmo que seja para tomar as mesmas decisões ruins. Todos vão publicar os mesmo livros de merda mesmo! É o tipo de pessoa que decide o que publicar que precisa mudar. Não é preciso ter esse meio-termo de merda."

    Beatty é um autor que se recusa a explicar pontos de seu livro -acha que todas as respostas já estão lá. Irrita-se com questões mais amplas da literatura e dispara, vez ou outra, vários palavrões.

    Sabe um tema que o faz cuspir marimbondos? Quando acusam autores negros de não serem "universais". "Isso não faz o menor sentido. É um olhar que diz 'você não faz parte do meu universo', o que, por si só, já mostra que não é um olhar universal."

    Outro motivo de irritação é a tentativa de lê-lo, ou a qualquer autor, como um documento, simples relato de sua experiência como negro.

    "É como se os autores não tivessem permissão para imaginar. Mas a beleza de tudo é que o autor está mentindo. Essa busca por autenticidade é ruim para a literatura. As pessoas querem não a afirmação do outro, mas de si mesmas. Esse é o tema do meu livro."

    LEIA UM TRECHO DO LIVRO:

    O Vendido
    Paul Beatty
    l
    Comprar

    _"Uma noite, não faz muito tempo", ele disse, "tentei ler este livro, Huckleberry Finn, para meus netos, mas não consegui passar da página 6 porque está coalhado de termos racistas. E, apesar de serem as crianças mais inteligentes e combativas de oito e dez anos que conheço, sei que meus meninos não estão prontos para entender Huckleberry Finn por conta própria. Foi por isso que tomei a liberdade de reescrever a obra-prima de Mark Twain. Onde a repulsiva palavra 'crioulo' aparece, substituí por 'guerreiro', e troquei 'escravo' por 'voluntário de pele escura'." [...]_

    "Também melhorei o modo como Jim fala, mudei um pouquinho a trama e alterei o título para As aventuras livres de termos pejorativos e as jornadas intelectuais e espirituais do afro-americano Jim e de seu jovem protegido, o irmão branco Huckleberry Finn, enquanto eles vão em busca da unidade familiar perdida dos negros."

    _Então Foy ergueu o exemplar de sua nova versão para todos examinarem. Não tenho a melhor visão do mundo, mas dava para jurar que a capa mostrava Huckleberry Finn pilotando a balsa pelo poderoso rio Mississippi [...]_

    O VENDIDO
    AUTOR Paul Beatty
    TRADUÇÃO Rogério Galindo
    EDITORA Todavia
    QUANTO R$ 54,90 (318 págs.)

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