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    ANÁLISE

    Narcisismo de Beyoncé-Virgem coroa sua cruzada antirracista

    SILAS MARTÍ
    DE SÃO PAULO

    17/07/2017 02h30

    Na imagem mais popular da história do Instagram, Beyoncé aparece ajoelhada de perfil, só de calcinha e sutiã, coberta por um véu esverdeado com as mãos envolvendo a barriga grávida de seus gêmeos Sir Carter e Rumi. Flores emolduram a cantora, uma espécie de aura vegetal contra um plácido céu azul.

    Mais de 11 milhões de pessoas deram dois tapinhas na tela do celular para curtir a fotografia. Agora, na primeira aparição dos novos rebentos que vem abalando as redes sociais desde a semana passada, quase 6 milhões de fãs viram e gostaram de uma imagem semelhante -moldura floral e lingerie, com a diferença que os dois recém-nascidos aparecem equilibrados nos braços da maior estrela do pop da atualidade.

    Mesmo sendo um fenômeno da era dos memes e curtidas, Beyoncé resgatou nessas imagens estratégias da iconografia cristã em voga desde tempos medievais. Seu manto azul remete à pureza, aos céus e à nobreza. O vestido -no caso aqui, só uma espécie de roupão que deixa ver uma barriga sequinha mesmo pós-parto- deveria ser vermelho, mas seu violeta ou lavanda estampado já dão outra ideia de amor, paixão e devoção.

    Menos conceitual, aliás, sua flexibilização do espectro de cores tem a ver com o fato de a Gucci ter feito da gravidez da diva uma espécie de comercial em nove meses, patrocinando cada um de seus looks, a maioria de estampa floral e tons esverdeados, a mesma paleta tie-dye desidratada que domina a coleção mais recente da grife italiana.

    Marketing à parte, Beyoncé, que destronou Madonna como a rainha do pop, agora quer voltar a uma Itália mais remota e se reafirmar com a pose das célebres "Madonna con Bambino" que povoam os afrescos das igrejas renascentistas. É uma espécie de autocoroação da nova majestade -ou divindade- do pop.

    Rainha de uma corte eletrônica, com quase 100 milhões de súditos no Instagram, Beyoncé deu à luz imagens que extrapolam qualquer limite do cafona, trazendo para o desarranjo da vida real artifícios que funcionaram só na pintura.

    Reprodução
    Imagem que a cantora postou nas redes sociais para anunciar gravidez dos gêmeos
    Imagem que a cantora postou nas redes sociais para anunciar gravidez dos gêmeos

    Fãs da cantora viram em sua expressão lânguida e na pose, com uma perna um pouco à frente da outra, uma versão pop da Vênus de Botticelli, mesmo que a pintura renascentista mostre uma moça muito mais pudica, com os cabelos cobrindo o sexo, e um ar de indiferença confusa.

    Em outros retratos feitos debaixo d'água, Beyoncé aparece grávida ainda envolta em véus multicoloridos, evocando uma espécie de "Ofélia" de Gustav Klimt caso o austríaco trabalhasse para a MTV.

    Mas a cantora, mesmo quando se quer angelical, transborda erotismo. E fez de um corpo de curvas lustrosas e volumes avantajados uma de suas maiores armas no showbusiness, aliado a uma voz poderosa cada vez mais a serviço de letras que exaltam a negritude em tempos de supremacistas brancos raivosos.

    Não espanta que depois do delírio visual que foi "Lemonade", o álbum-filme que consagrou a cantora como a maior diva do pop dos últimos tempos, ela tenha deixado qualquer pudor de lado para celebrar o nascimento de seus gêmeos com uma explosão de imagens bregas e narcisistas.

    Nas entrelinhas, Beyoncé está dizendo não se importar com o que o mundo vai pensar. E o nome de seu primeiro filho, Sir Carter, já traz embutido um título de nobreza, afirmando que ela e seu marido, o rapper Jay Z, são tudo que dizem a seu respeito -rei e rainha da indústria da música nos Estados Unidos.

    Mais do que isso, são os rostos mais venerados de uma realeza negra e americana.

    Ou seja, a Beyoncé-Virgem Maria é a apoteose caricatural da artista depois de outros atos de maior voltagem política, como quando ela cantou no Super Bowl, maior evento esportivo dos Estados Unidos, com o uniforme dos Panteras Negras, grupo de militância armada que combateu a segregação racial no sul americano.

    Num ato de sabotagem de um ícone máximo da cultura ocidental, Beyoncé se coloca acima do plano terreno e se diz mãe, senhora, rainha e -por que não deusa?- do mundo anestesiado, raso e narcísico das redes sociais.

    Rumi e Sir Carter, os irmãos mais novos de Blue Ivy, a primeira filha da cantora, vêm ao mundo num ato orquestrado de moda, marketing, ativismo político e celebração vazia -os motores mais poderosos desses tempos perigosos e bobos que a humanidade tenta atravessar.

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