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    Análise

    Zumbis de George A. Romero eram muito parecidos conosco

    INÁCIO ARAUJO
    CRÍTICO DA FOLHA

    16/07/2017 20h21

    Reprodução
    Cena de A Noite dos Mortos Vivos, de George A. Romero ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    Cena de 'A Noite dos Mortos Vivos', de George A. Romero

    O terror era um gênero moribundo, já se disse, quando "A Noite dos Mortos-Vivos" irrompeu como uma produção independente quase miserável que iria fazer história e fixaria George A. Romero, para sempre, como um inovador do gênero.

    Quase ao mesmo tempo, é verdade, Roman Polanski lançava, também com grande êxito, seu "O Bebê de Rosemary". O mal-estar do mundo no final dos anos 1960 parecia vir à tona com toda força.

    Deixemos Polanski de lado, por ora, para ficar com Romero. O cineasta nascido em Nova York, em fevereiro de 1940, e que passou a adolescência dentro dos cinemas se alimentando de tudo o que podiam lhe dar os grandes filmes dos anos 1930 e 40, do "Drácula" de Tod Browning ao "Sangue de Pantera" de Jacques Tourneur, morreu de câncer neste domingo (16), aos 77 anos.

    Em 1968, "A Noite dos Mortos-Vivos" relançou com força uma saga até então confinada aos mistérios religiosos do Haiti, de que aliás o mesmo Tourneur tratara com grande força em "A Morta-Viva" (1943).

    Agora, porém, algo havia mudado. Em primeiro lugar, em termos de produção: tratava-se de algo quase amadorístico produzido por um grupo de dez amigos. Algo que lembrava o "Shadows" de John Cassavetes (por sinal ator em "O Bebê de Rosemary", onde se desentendeu solenemente com Polanski).

    No mais, na intriga havia um lugar onde homens se protegiam de canibais (segundo Romero os definiu: de início ele não pensou em zumbis) tremendamente agressivos. O poder do contágio já era evidente, mas o que mais chama a atenção no filme é o tom desolador que o atravessa: uma angustiante sensação de fim de mundo.

    O sucesso do filme de certa forma mostrou-se paralisante para o cineasta, que só voltaria ao gênero anos depois, com "Martin" (1977), a história do jovem que, numa viagem de trem, vê o que parece ser a garota de sua vida: a violenta, a mata e bebe seu sangue.

    Seus monstros nunca foram seres distantes de nosso mundo. Ao contrário, podiam ser excessivamente parecidos conosco. Daí, talvez, a terrível pergunta que nos sugeriam: e quem garante que não sou eu, também, um desses mortos-vivos?

    O mal-estar, sempre. O desgosto do mundo tal como se desenhava naquele momento em que a contracultura era vencida pela guerra no Vietnã. Esse mal-estar foi também a marca que transmitiu aos mais notáveis e inovadores cultores do gênero que vieram depois, de David Cronenberg a John Carpenter: existe um horror que não vem tanto dos mortos-vivos ou dos seres sobrenaturais quanto dos vivos-vivos.

    Depois de "Martin", logo Romero voltaria aos zumbis (com "O Despertar dos Mortos", 1978). Dali por diante não os abandonaria, assim como raramente se lançaria fora do universo do horror (com a notável e pouco conhecida exceção de "Cavaleiros de Aço" (1983), no qual um grupo de motoqueiros reencena ou tenta reviver a saga medieval da cavalaria).

    Seu trabalho produziu também desdobramentos lamentavelmente vulgares. Não por sua responsabilidade, é verdade. O fato é que os mortos-vivos, que ressuscitaria em tantos filmes seguintes, pareciam uma arma de luta, antes de mais nada, contra a vulgaridade do mundo.

    Talvez o ponto alto, já em nosso século, desse modo de olhar esteja em "Terra dos Mortos" (2005). Abertamente cinefílico, o filme evoca, entre outros, o "Metropolis" (1926) de Fritz Lang, fazendo os ricaços se fecharem num edifício fortaleza, enquanto os pobres ficam à mercê dos mortos-vivos. Se a descrição lembrar um país latino-americano muito próximo de nós talvez seja mera coincidência. Mas talvez não.

    A lenda viva do horror morreu. As questões que suscitou continuam por aí.

    O QUE ASSISTIR

    "A Noite dos Mortos Vivos" (1968)
    Neste longa, personagens ficam presos em uma fazenda atacada por uma horda de zumbis

    "Despertar dos Mortos" (1978)
    Dessa vez, os zumbis atacam os personagens em um shopping. O filme arrecadou US$ 55 milhões

    "Dias dos Mortos" (1985)
    No longa, um grupo de militares e cientistas fica preso num bunker, enquanto o mundo é tomado por mortos-vivos

    "Terra dos Mortos" (2005)
    Este é mais apocalíptico ainda. Os zumbis tomaram conta do mundo, e os poucos humanos que restam vivem em uma cidade murada

    "Diário dos Mortos" (2007)
    Um grupo de estudantes de cinema grava um filme de zumbi, quando passa a ser atacado por mortos-vivos

    "A Ilha dos Mortos" (2009)
    Habitantes de uma ilha são atacados, enquanto esperam uma cura para os zumbis

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