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    'Que gay o caralho. Eu sou um ser humano', diz Ney Matogrosso

    MARCO AURÉLIO CANÔNICO
    DO RIO DE JANEIRO

    19/07/2017 11h58

    Homenageado do 28º Prêmio da Música Brasileira, em meio à turnê mais bem-sucedida de sua carreira ("Atento aos Sinais", iniciada em 2013) e com inúmeros projetos paralelos, tanto na música quanto no cinema, Ney Matogrosso, 75, está claramente numa fase luminosa.

    Em momentos como este, é fácil esquecer que o cantor trilhou um caminho pedregoso até se estabelecer no cânone da MPB. Se teve sucesso imediato com o grupo no qual estreou, o Secos e Molhados (em 1973), quando partiu para a carreira solo, dois anos depois, Ney apanhou.

    Da direita "careta", da esquerda "machista pra caralho", dos críticos "implacáveis" que não aceitavam sua ousadia musical e visual. E de compositores que o consideravam extravagante demais para suas obras. Ney se lembra, mas prefere não nomear os algozes. "Tudo isso ficou pra trás", diz hoje.

    Para superar os ataques, contou com chá do Santo Daime e com o perene reconhecimento do público. O mesmo que terá a chance de vê-lo subir ao palco do Teatro Municipal do Rio, na noite desta quarta (19), para cantar e ouvir convidados como Chico Buarque e Ivete Sangalo cantarem as canções que ele tornou conhecidas.

    Foi após um ensaio para o Prêmio da Música Brasileira que Ney recebeu a Folha em sua cobertura, no Leblon, zona sul do Rio, na noite de segunda (17). Morador da cidade desde 1974, diz que ela está em "decadência total".

    Cansado, mas solícito, conversou sobre a homenagem que receberá, sobre seu passado e seu futuro. Falou também de política, com a qual se desiludiu desde o escândalo do Mensalão, no primeiro mandato de Lula –candidato em quem votou em todas as eleições até ali.

    Identificou "uma direita careta no poder" e disse que se alinha aos gritos de "fora, Temer" que vez por outra ecoam em seus shows –mas recusa-se a fazer coro.

    *

    Folha - Como você recebeu essa homenagem do Prêmio da Música Brasileira?
    Ney - Não é muito a minha expectativa na vida uma coisa dessas. Essas homenagens são sempre muito cansativas, porque você tem de estar atuante dentro da história. E eu acho muita exposição, fico meio retraído. Não é algo que eu anseie, um filme da minha vida, ser enredo de escola de samba, não anseio por essas coisas. Gosto do reconhecimento que ocorre naturalmente nos shows.

    Por parte do público. E o da crítica, lhe importa?
    Não mais. Me importei muito no começo, quando tive as piores. Só que eu acreditava no que tinha feito, achava que era bom. Achei muito injusto. Eu estava me apresentando independente do Secos e Molhados, e foram implacáveis. Naquele exato momento, me desvencilhei das críticas. Não desconsidero, mas não faço nada pensando nelas. Faço o que acho que devo fazer.

    Acha que havia algo de preconceituoso nas críticas?
    Talvez. Eu fiquei dois anos sem ter meu nome publicado no "Jornal do Brasil" porque havia um editor que dizia que não publicava nome de travesti. Eu nunca fui um, nunca me considerei um travesti. Sou do sexo masculino, gosto de ter pau, não sei de onde ele tirou isso.

    Você já reavaliou seus trabalhos, com o tempo?
    Tem uns de que gosto mais, outros, menos. O "Destino de Aventureiro" (1984), por exemplo, era uma sobra do "Pois É" (1983). Gosto de uma faixa ou outra, mas não do que resultou o disco. Gosto muito de "As Aparências Enganam" (1993), com a Aquarela Carioca, é um dos meus preferidos. Gosto muito de "Seu Tipo" (1979), que foi o disco que me deu meu primeiro prêmio, pela Associação Paulista de Críticos de Artes.

    Essa homenagem é também um reconhecimento dos seus colegas de trabalho. Como foi isso ao longo de sua carreira?
    Também mudou, por parte de alguns compositores. Houve um momento que alguns me diziam "eu não sei fazer música pra cima". Eu respondia "mas não estou pedindo música 'pra cima', estou pedindo música sua". Outro, me pediu para ligar depois, eu liguei e ouvi ele dizer "diz pra ele que não estou". Acho que tinha um pouco de preconceito também, mas tudo isso ficou pra trás. Houve um momento em que eu entendi isso, que cada vez que eu lembrava de uma coisa dessas, que tinha sido desagradável para mim, eu sentia que estava preso. Eu disse: "Como é que você pode estar preso a opiniões de 30 anos atrás?". E me livrei disso.

    Quando foi esse momento?
    Quando tomei o Daime [chá alucinógeno da planta Ayahuasca], no final dos anos 1980. O Daime conseguiu me liberar disso.

    Você ainda usa?
    Tenho, mas tomo uma colher só. Não tem regularidade, quando eu tô a fim, tomo uma colher, para ficar dentro da energia da bebida, que pra mim foi uma experiência muito positiva.

    Qual a importância desse tipo de premiação?
    Em termos de mercado, não faz diferença. Nos Estados Unidos, sim, mas aqui não temos essa mentalidade, é muito restrito ao acontecimento, não muda para o público. Em termos práticos, na carreira da pessoa, não muda nada. Talvez para um iniciante dê um impulso.

    Há uma geração de novos artistas que levam a sexualidade ao palco. Você os conhece?
    Conheço alguns, o Liniker, o Rico Dalasam, As Bahias e a Cozinha Mineira, o Não Recomendados. Mas sei que tem muitos mais. Acho interessante que as pessoas estejam assim, porque é uma hora muito estranha, em que há uma direita careta no poder, e essas pessoas pipocando no Brasil. Acho interessante que as pessoas se manifestem, travestis, transexuais, todos, não importa.

    Quando a sexualidade se mistura com a parte artística, não há o risco de ser panfletário?
    Olha, panfletário, numa instância qualquer, é. É uma pessoa se expressando com liberdade, isso é panfleto, eu fui panfleto de mim mesmo. Só que eu sempre alertei: não se satisfaçam comigo, com a minha manifestação. Vocês têm o direito de ser quem são. Sempre falei isso e demorou muito para eu ver isso, eu surgi em 1973 e agora é que a gente vê esse tipo de coisa acontecendo. E, de uma outra maneira, não é a minha, porque eu gosto de ser do sexo masculino. Nunca quis ser mulher nem ocupar o lugar de mulher. Sou um homem que apenas não respeitou os limites, que transita com liberdade entre uma ponta e outra do espectro.

    E como a sua sexualidade se misturou com a sua arte?
    Quando eu surgi, tinha 30 anos, os hormônios jorravam. Não tinha controle, estava exposto em cima de um palco, seminu. Isso foi pensado, queria ser um desaforo contra a ditadura, já que não pegava em armas. Eu me requebrava porque achava que podia, Elvis Presley já tinha se requebrado lá, por que eu não podia aqui no Brasil? Nunca respeitei essa questão de masculino e feminino porque queria transitar com liberdade, embora sempre tenha dito que sou do sexo masculino e gosto. Tenho peito cabeludo e gosto, tenho pau e gosto. Mas isso não me impede de transitar.

    Essa busca por desafiar, por ser desaforado, ficou para trás?
    Não é mais necessário. Se bem que, para a caretice que está se instalando agora, eu devo ser uma afronta ainda.

    Teme ver Bolsonaro presidente?
    Ele não será presidente nunca. Não acredito que o Brasil dê esse passo.

    Você tem acompanhado a política?
    Acompanho assim, o que eu vejo: o presidente [Michel Temer] está por um triz de ser saído do poder e está comprando generosamente os votos dos deputados para não sair. Mas a coisa está tão estranha que, apesar do dinheiro gasto com isso, ele ainda pode sair. Porque o dinheiro não é suficiente, o jogo é muito sórdido, as pessoas são venais: se vendem, mas não têm compromisso com aquele que as comprou.

    Você foi contra ou a favor do impeachment de Dilma?
    Eu achava que estava muito mal. Ela fez um péssimo governo, que acabou nessa história. O Lula a colocou para manter aquecida a cadeira dele. Eu votei nele várias vezes, contra o Collor, contra o Fernando Henrique, só não votei no segundo mandato. Porque no primeiro estourou o Mensalão. E eu não podia acreditar que ele não soubesse de nada. Aí te confesso que me decepcionou. Foi a última vez que acreditei em alguém. Desde então, anulo meu voto com a maior tranquilidade.

    Você não se alinha nem à esquerda nem à direita?
    Não. Não tenho essa coisa partidária, estou mais preocupado com o ser humano. Se quiser me definir, diga que eu sou um humanista. Primeiro, não acho que existe esquerda e direita, a meta é a mesma para ambos os lados: a chave de cofre e o poder. Não tenho mais ilusões. Antigamente eu te diria que era de esquerda. Até que, quando eu achei que a esquerda iria me compreender, porque eu estava tentando cariar a ditadura, a esquerda me descia o cacete. Não entenderam que eu podia ser útil.

    Desceram o cacete por quê?
    Por preconceito, não é isso? A esquerda não é machista pra caralho?

    Nos seus shows há coro de "fora, Temer"?
    Tem. Aí eu canto "O Tempo Não Para" para eles.

    Querendo dizer o quê?
    É uma música de 1988, mas é atual até hoje. Tudo passa, você não pode achar que as coisas são definitivas. Tudo é circunstancial, está em movimento. Eu tenho essa percepção da vida.

    Mas os gritos o incomodam?
    Eu apenas não grito. Acho que não me compete. Mas aceito que gritem. Isso está em toda parte, é um desejo das pessoas.

    Seu, não?
    É um desejo meu, mas não acho que eu deva fazer isso. Eu tô ali para uma outra coisa. Não sou obrigado, nem acho que minha função ali seja essa. Aceito que falem, mas eu não falo.

    Como são suas relações com políticos?
    Só fiz campanha para o Fernando Henrique [Cardoso], quando ele foi candidato a senador [1986]. Cantei três músicas em um comício dele, não cobrei nada. E sabe o que eu ouvi quando saí [do palanque]? Ele entrou e disse que minha presença era uma mostra de que ele não tinha preconceito contra minorias. Mas não fui lá como representante de minorias, fui como um brasileiro que acreditava nele.

    Você se considerou em algum momento representante de uma minoria?
    Eu não. Nunca peguei essa bandeira, não me interessa. Acho que eu sou útil assim, falando, conversando. Teve um encontro internacional gay no Rio, queriam que eu fosse presidir. Eu disse que não, não penso assim. Aí foi o Renato [Russo]. Tá certo, ele é quem tinha de ir, a cabeça dele era assim. Eu não defendo gay apenas, defendo índios, fiz um vídeo recentemente pedindo a demarcação de terras. Defendo os negros, que estão na mesma situação que viviam nas senzalas, estão presos aos guetos.
    Me enquadrar como "o gay" seria muito confortável para o sistema. Que gay o caralho. Eu sou um ser humano, uma pessoa. O que eu faço com a minha sexualidade não é a coisa mais importante na minha vida. Isso é um aspecto, de terceiro lugar.

    E o que é o mais importante na sua vida?
    Ter caráter, ser uma pessoa honesta, de princípios, que trata bem as outras. Ser uma pessoa afetuosa, amorosa. Isso é mais importante do que com quem eu trepo. Sou benquisto e recebo isso nas ruas, das pessoas.

    Quais são seus próximos projetos?
    Estou pensando ainda, selecionando repertório, não sei exatamente. Tem Milton [Nascimento], Chico [Buarque], Sérgio Sampaio. Mas claro que não vai ficar restrito a esses três. Já tenho músicas inéditas. Quero que tenha uma do Roberto Carlos também.

    Há uma expectativa em torno do show que você vai fazer com a Nação Zumbi no Rock in Rio.
    Eu baixei a bola disso, não é o que virou, a volta do Secos e Molhados. Eu queria ter feito o "Atento aos Sinais" [disco e turnê] com a Nação, mas eles estavam comprometidos com a Marisa Monte [parte da banda participou da última turnê da cantora]. Toquei meu barco e aí me convidaram para fazer o show no palco Sunset com a Nação. Eu ofereci cantarmos algumas músicas do Secos e Molhados, mas não é a volta da banda. Vamos cantar cinco, e tem repertório deles também, além de Jackson do Pandeiro. Já tivemos dois encontros e começaremos a ensaiar regularmente em setembro.

    Você está em uma fase muito produtiva, não?
    Em agosto eu estou de férias, não quero que me falem em trabalho. Estou trabalhando que nem um animal de carga, está pesando demais, é muita coisa ao mesmo tempo. Tenho shows do "Atento aos Sinais" marcados até dezembro.

    Já é sua turnê mais longa?
    Sim. Vai acabar uma hora, mas não sei se em dezembro. Em fevereiro de 2018 chega aos cinco anos. Como posso cortar uma coisa que faz esse sucesso? Só se eu fosse louco. Nunca fiquei tantos anos fazendo um show lotado por toda parte que eu passo.

    Por que esse sucesso?
    Não faço ideia.

    Você encerra as turnês por falta de demanda, então?
    Quando começo a perceber que a coisa já não é como era, eu paro. Não vou esperar ficar decadente para acabar. Mas esse, não posso parar. Não se faz isso, você tem que respeitar essas coisas. Numa hora de crise no país, eu lotando todo canto que passo. Acabei de fazer pela segunda vez no Espaço das Américas, em São Paulo, 3.000 lugares esgotados com 20 dias de antecedência. Fiz Portugal pela terceira vez, fui duas vezes ao Uruguai, duas à Argentina, tenho viajado muito.

    *

    28º PRÊMIO DA MÚSICA BRASILEIRA
    QUANDO quarta (19), às 21h
    ONDE Teatro Municipal Do Rio (praça Floriano, S/nº, Centro)
    QUANTO R$ 100 a R$ 300
    CLASSIFICAÇÃO livre

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