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    Não, "Despacito" não causou um boom turístico em Porto Rico

    MADELINE FRIEDMAN
    DO "WASHINGTON POST"

    21/07/2017 17h01

    Reprodução
    Luis Fonsie e Daddy Yankee em cena do clipe 'Despacito'
    Luis Fonsie e Daddy Yankee em cena do clipe 'Despacito'

    Em espanhol, "despacito" quer dizer "devagarzinho".

    E foi nessa velocidade que minha confusão cresceu, ao acompanhar o avanço do chamado hit musical do verão à condição de grande salvador de Porto Rico, tudo isso em menos de uma semana. (Se você não sabe, Porto Rico está enfrentando uma crise fiscal de proporções épicas, com uma dívida pública de mais de US$ 70 bilhões.)

    Se você é porto-riquenho e vive nos Estados Unidos, e nós somos mais de 5,3 milhões, de acordo com o Centro de Estudos Porto-Riquenhos do Hunter College, com certeza terá lido essa história. Era difícil ignorar manchetes como "Justin Bieber causa 45% de alta no turismo de Porto Rico" e "Despacito estimula a economia de Porto Rico".

    Se você não é porto-riquenho e por algum motivo não ouviu a canção, "Despacito" é um hit de dança dos músicos Daddy Yankee e Luis Fonsi, os dois de Porto Rico, que, em versão remix, ganhou duas estrofes cantadas por Justin Bieber. É a primeira canção em espanhol a liderar a parada de sucessos Billboard Hot 100 desde "La Macarena". O tema da canção é simples: você precisa de tempo para curtir uma sedução. Não estamos falando de um novo Ismael Rivera ou de letras ao estilo de Bob Dylan.

    Mas vou admitir: ela é grudenta. Enquanto eu acompanhava, incrédula, as reportagens sobre a canção que lotavam meus feeds no Facebook e Twitter, fiquei imaginando se "Despacito" podia ser mais que uma canção. Será que o reggaeton, tão criticado no passado como destruidor da rica tradição musical porto-riquenha, agora nos salvaria? Será que Bieber é famoso a ponto de provocar a reversão de tendências históricas no turismo e convencer pessoas a visitar a ilha no final da primavera e durante o verão, um período em que os gringos em geral derretem por conta da umidade? Será que uma canção quase toda em espanhol teria tamanho poder - hoje, nos Estados Unidos do presidente Trump?

    Bem, puertorros, beliebers e fãs de Fonsi, odeio ter de ser a portadora da má notícia, mas não, "Despacito" não ajudou a fragilizada economia de Porto Rico de nenhuma maneira tangível - não importa o que digam o "Miami Herald", a "Billboard", o "Daily Mail", a estação da CBS Radio em Sacramento, blogs de cultura popular como o UPROXX ou a revista "Newsweek".

    Pelo que descobri, tudo começou com uma reportagem de uma agência de notícias argentina, mostrando números da Hotels.com e afirmando que o "interesse" por fazer turismo em Porto Rico havia aumentado em 45% por causa da canção. E no nosso ambiente de notícias, no qual chegar primeiro é melhor do que estar certo, isso foi suficiente. O "El Nuevo Dia", um jornal em espanhol publicado em San Juan (a capital de Porto Rico), reproduziu a reportagem argentina. Luis Fonsi mencionou no Twitter o que havia lido no jornal. A revista "Billboard" e o UPROXX se uniram ao coro, publicando reportagens com base no tweet de Fonsi, e, à medida que as histórias ganhavam circulação viral, cada nova manchete fazia com que o "boom" de turismo em Porto Rico parecesse cada vez melhor. Mas ninguém parou para questionar os fatos.

    Muito tempo atrás, meu pai, um repórter aposentado que cobriu as notícias de Porto Rico por décadas e foi testemunha de todo o caos e contradição da ilha, me deu um excelente conselho, quando eu estava começando no jornalismo: se alguma coisa parece boa demais para ser verdade, é porque ela é boa demais para ser verdade.

    Foi o que aconteceu nesse caso. Como posso fazer essa afirmação? Comparei os índices de ocupação mensais dos hotéis de Porto Rico, compilados pelo Instituto de Estadísticas do governo. Comparei alguns meses posteriores ao lançamento da canção (fevereiro e maio deste ano) aos mesmos meses em 2016. Nenhuma mudança da ordem de 45%, Também li uma reportagem sobre os desafios que o turismo em Porto Rico enfrenta em 2017, que trazia dados como uma queda de 15% nos impostos arrecadados pela Puerto Rico Tourism Company sobre as diárias de hotéis em janeiro de 2017, seguida por 21% de queda em fevereiro e 2% de queda em maio - tudo isso em relação aos mesmos meses no ano anterior. (No entanto, em junho de 2017, houve uma alta de 5,4%.)

    Também contatei a Puerto Rico Tourism Company. Embora o diretor executivo José Izquierdo tenha confirmado que o número de buscas envolvendo Porto Rico cresceu nos sites de viagens, ele não ofereceu números sólidos sobre qualquer aumento no número de visitantes à ilha, desde que a canção chegou ao topo das paradas. Mas demonstrou muito entusiasmo quanto ao retrato positivo gerado pelas afirmações sobre o impacto da canção. "A Tourism Company está estudando maneiras de celebrar o sucesso da canção para continuar a inspirar interesse e curiosidade sobre Porto Rico como destino turístico de primeira classe", disse Izquierdo.
    Y colorín, colorado, este cuento se ha acabado. (E a história acaba aí.)

    Não vou dizer que as reportagens que transformaram "interesse por conhecer" em milagre econômico são notícias falsas. Decidi que o motivo para elas é um otimismo ingênuo. Como sabe qualquer pessoa que conheça Porto Rico, coisas ainda mais estranhas já aconteceram por lá. Pergunte a qualquer morador local sobre o chupacabra ou as invasões ocasionais de OVNIs., A ilha é muitas vezes comparada (quase sempre de modo afetuoso) à Macondo de Gabriel Garcia Marquez em "100 Anos de Solidão", e talvez houvesse uma esperança coletiva de que o bom e velho realismo mágico latino-americano pudesse ajudar a tirar Porto Rico da horrenda crise econômica que enfrenta.

    O mais provável, porém, é que a história tenha sido simplesmente uma notícia feliz, com uma ótima manchete e boa perspectiva de atrair cliques, e por isso todo mundo decidiu postá-la, e em seguida as coisas aconteceram rapidito demais.

    Hoje, estamos tão conectados a tantas coisas que seria inteligente seguir um conselho muito sábio, que em geral vem sem solicitação para as pessoas que visitam Porto Rico pela primeira vez: "Cógelo con calma". (Vá com calma.) Tente não correr demais com as coisas o tempo todo. Leia a reportagem até o fim antes de compartilhá-la, produza e consuma mídia em ritmo um pouco mais razoável, mais
    des
    pa
    cito.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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