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    Crítica

    Poeta cria sátira com discursos de sessão do impeachment de Dilma

    MIGUEL CONDE
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    29/07/2017 02h00

    SESSÃO
    QUANTO: R$ 35 (248 págs.)
    AUTOR: Roy David Frankel
    EDITORA: Luna Parque

    *

    Além de não escrever nenhuma palavra de seu livro de estreia, o poeta carioca Roy David Frankel decidiu construi-lo com material de procedência duvidosa: discursos de parlamentares brasileiros.

    "Sessão" compila e transforma em poemas parte do registro taquigráfico da votação do impeachment da então presidente Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados, realizada em 17 de abril de 2016.

    Pedro Ladeira/Folhapress
    Início da votação do processo de impeachment de Dilma Rousseff, na Câmara dos Deputados
    Início da votação do processo de impeachment de Dilma Rousseff, na Câmara dos Deputados

    A ideia lembra os "ready-mades" de Marcel Duchamp (uso de objetos industrializados no âmbito da arte), como observa no posfácio o crítico Eduardo Coelho. E conversa mais de perto com a obra do americano Kenneth Goldsmith, teórico da escrita não-criativa e autor de livros que transcrevem previsões do tempo ("Weather", 2005) e boletins de trânsito ("Traffic", 2007), entre outras fontes inusitadas.

    Mas o gesto de Frankel não sugere tanto um questionamento polêmico de padrões de validação do juízo estético, como em Duchamp ou Goldsmith, quanto uma crítica ao material recolhido.

    Em lugar de operar uma "transfiguração do lugar-comum" (na expressão do filósofo Arthur C. Danto), o deslocamento discursivo ressalta a vulgaridade do episódio histórico, a pequenez do grande acontecimento.

    As cesuras, enjambements e composições visuais criadas pela quebra dos discursos em versos e estrofes interferem nos votos do impeachment com espírito de deboche.

    Têm algo de grafite em fotografia oficial, bigode rabiscado a caneta na imagem da autoridade. Realizam uma subversão precária, no modesto varejo dos 300 exemplares que reordenam os discursos transmitidos para milhões na televisão.

    Em vez de contrapor suas palavras àquelas dos parlamentares, "Sessão" faz da paginação um ato mínimo de insubordinação, sublinhando lances retóricos rasteiros ou dando novo sentido aos termos transcritos.

    Sempre alinhados à direita na página, os vocábulos relativos à dimensão coletiva da decisão tomada ali (Brasil, brasileiros, brasileiras, pátria, nação, país) são isolados e mantidos à parte do resto dos discursos, em que predominam louvores a Deus e mensagens para aliados, amigos e familiares.

    Nada sutil, o procedimento cria um comentário gráfico claro e contundente sobre os valores em jogo na definição do futuro do país, apostando que certa medida de mão pesada (semelhante ao traço forte do pichamento) vem a calhar para lidar com a sessão em que as cartas da política nacional são postas na mesa em clima de cabaré.

    Seria possível associar o livro à recolha de expressões reveladoras do cotidiano brasileiro nos poemas de Francisco Alvim, ao uso reiterado do clichê na obra de André Sant'Anna ou à colagem de frases alheias realizada recentemente em "Delírio de Damasco", de Veronica Stigger.

    "Sessão" é singular, porém, no que diz respeito ao senso de oportunidade e à inteligência estratégica de sua realização, que expõe a política brasileira como uma ridícula (e triste) paródia de si mesma.

    *

    Trechos extraídos de "Sessão"

    Nós não podemos
    passar uma imagem
    de que este não é
    um Parlamento
    que está apreciando um [processo
    grave.
    Então,
    que se faça a luta,
    a disputa política,
    mas que se faça nos
    [discursos,
    com o respeito de todos.
    Tem que haver respeito.
    O respeito não é só
    aos companheiros
    [Deputados,
    o respeito é ao
    País,
    que está assistindo a isso.
    O.k.?

    Nesta Casa
    eminentemente
    política,
    porém,
    não estamos julgando
    a pessoa da
    Presidente Dilma Rousseff,
    estamos julgando
    politicamente
    o Governo.

    *Hoje,*
    quando saí de casa,
    passei no quarto dos meus
    filhos
    – Rafael, de 3 anos, e
    [Felipe, de 5 anos –,
    que estavam dormindo
    com o semblante
    inocente
    característico das crianças.
    Imaginei o que eles
    [estariam
    sonhando
    e me deparei
    com a realidade
    que iremos viver
    neste domingo
    nesta Casa.

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