• Ilustrada

    Friday, 03-May-2024 18:47:15 -03

    Análise

    Peça é madura ao abrir diálogo em polêmica de apropriação cultural

    PALOMA FRANCA AMORIM
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    30/07/2017 02h00

    Reprodução
    ORG XMIT: 253501_0.tif A poetisa Stela do Patrocínio, esquizofrênica que viveu na Colônia Juliano Moreira, hospital psiquiátrico de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, entre 1966 e 1992. Foto: Reprodução
    A poeta Stela do Patrocínio no Rio de Janeiro, onde viveu entre 1966 e 1992

    A produção criativa e a vida da poeta Stela do Patrocínio constituem o tema do espetáculo "Entrevista com Stela do Patrocínio", dirigido por Georgette Fadel e Lincoln Antonio, também integrantes do elenco, ao lado de Juliana Amaral.

    Stela (1941-1997) foi uma mulher negra e pobre abandonada pela família e internada na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, onde viveu por 30 anos.

    A peça, em circuito há 12 anos, voltou ao cartaz em julho na Biblioteca Mário de Andrade e provocou intensa discussão sobre o limites entre a representação de pessoas brancas sobre conteúdos, manifestações e personagens negros.

    A atriz Georgette Fadel constrói em cena uma trajetória épica: ela se aproxima da personagem por meio dos poemas e das falas da própria Stela, transformados em canções e interlúdios de comentário.

    Esse procedimento confere liricamente a importância devida às palavras de Stela, que foi considerada inválida cognitiva e intelectualmente. Georgette, do ponto de vista estético, jamais encarna Stela, e sim apresenta de forma distanciada suas experiências reflexivas e especulativas sobre o mundo.

    O percurso do espetáculo, no entanto, não o blindou da manifestação de espectadores negros, em 10 de julho, questionando o fato de Georgette ser uma mulher branca a interpretar uma poeta negra.

    A polêmica se orientou para além da realização estética, e a atriz acolheu a intervenção, posicionando-se a favor do diálogo e do avanço no debate sobre a ausência de corpos negros nos púlpitos artísticos.

    Georgette anunciou que a peça se tornara, a partir de então, um fórum aberto e disse ser urgente repensar o formato da produção teatral em São Paulo, uma cidade em que centros culturais ainda permanecem frequentados, majoritariamente, por brancos.

    Ao final da apresentação foi aberta uma roda de conversa para quem desejasse opinar sobre o tema na ágora política em que se transformou a peça.

    Artistas negros deram seu parecer sobre o contexto atual das artes cênicas.

    Um relato lúcido de uma atriz presente na plateia ilustrou a condição ainda vigente da participação de intérpretes negros no mercado de trabalho: em uma propaganda para a qual fora chamada, mudaram sua personagem de gerente da empresa para atendente de caixa pouco antes da gravação —a produtora do comercial alegou ter sido uma exigência do cliente.

    Por outro lado, também surgiram falas de recusa ao avanço dos movimentos de negritude nas artes, argumentos afirmando que muitas pautas negras são exageradas e injustas para com os demais setores sociais.

    Apesar disso, o passo dado por Georgette, Lincoln e Juliana a partir da intervenção do público negro, força motriz desse episódio, gerou um convite à reflexão sobre a representatividade racial que presentifica Stela do Patrocínio e seu vital legado histórico e poético.

    PALOMA FRANCA AMORIM é dramaturga e autora de "Eu Preferia Ter Perdido um Olho" (ed. Alameda).

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024