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    CRÍTICA

    Obra híbrida exibe máquina lírica de poeta incontornável

    PAOLA POMA
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    05/08/2017 02h03

    Arquivo Pessoal
    O poeta Herberto Helder
    O poeta Herberto Helder (1930-2015)

    PHOTOMATON & VOX (ótimo)
    AUTOR Herberto Helder
    EDITORA Tinta da China
    QUANTO R$ 69 (176 págs.)

    *

    Herberto Helder é um poeta incontornável. E o lançamento de "Photomaton & Vox"(1979) no Brasil, após quase 40 anos da primeira edição, confirma a sua contemporaneidade.

    Híbrido de biografia, relato de viagens, crítica e manifesto poético, convida o leitor a participar destas "ramificações autobiográficas" dotadas de uma perspectiva subversiva da linguagem.

    O título que, numa primeira leitura, causa estranhamento, opera como palavra-chave para a compreensão do livro. "Photomaton" eram pequenas cabines fotográficas automatizadas, do início do século 20, inspiração e ferramenta para os surrealistas.

    De modo semelhante, Herberto Helder estrutura seu livro numa sequência de 60 fragmentos –fotogramas– revelando as várias possibilidades de identidade do poeta, processo que embaralha memória e invenção, constituindo uma montagem cinematográfica desestabilizadora do sujeito.

    Num escritor tão refratário a entrevistas e depoimentos, nos deparamos com instantâneos ligados à infância ("Mas a adolescência é apenas ira e dor"), à cidade natal e a sua saída para o mundo ("Ao princípio era uma ilha. [...] Chego a Lisboa. Portugal é um mapa: vou daqui para ali; não gosto. E a Espanha, a França, a Bélgica, a Holanda. E a Inglaterra? [...] Vai-se ver e a Europa já não está. [...] E a América do Sul? Lá iremos.").

    Aparecem também a viagem para a África ("E eu completamente desesperado num canto de África, as contas com a melancolia dos aeroportos, vendo as famílias (de que me fora livrando pelos tempos fora) a esfregarem as mãos..."), e o grave acidente que quase lhe tirou a vida –e que o poeta afirma ter sido causado por uma máscara enfeitiçada ("Na manhã seguinte fui vítima de um desastre de automóvel, de que não morri apenas pelo que me restava de proteção jupiteriana.").

    As passagens autobiográficas convivem com reflexões de ordem literária e política. O poeta desafia o surrealismo ("Nunca há surrealismo, porque o surrealismo que houver será sempre uma 'descrição do mundo' (Juan Matus)") e recusa a tradição ("Temos de aturar todo o aborrecimento de uma velha modernidade: Fernandos Pessoas, surrealismos, a política com metonímias, a filosofia rítmica, as religiosidades heréticas, as pequenas tradições de certas liberdades. Acabou-se.").

    Provoca ironicamente as instituições ao requerer uma bolsa "para estudo e investigação de explosivo, armadilhas, bombas [...] com que execute [...]o plano de fazer ir pelos ares essa humanista tão votada aos progressos, concedente instituição."), e faz uma autocrítica nos fragmentos "(em volta de)" e "(antropofagias)" a alguns de seus livros já publicados.

    O seu "photomaton" convoca Holderlin, Nietzsche, Baudelaire, Rimbaud, Borges, Bataille, Murilo Mendes, entre outros. Os campos magnéticos da tradição se atraem e se repelem na "vox" plural do poeta, que deixa suas impressões digitais em tudo o que toca, se inserindo na "magnificência do retrato".

    Porém, é preciso chamar atenção para a metáfora obsessiva do crime como um duplo enigmático da poesia.

    O autor se considera "um registo vivamente problemático", e diz só escrever por um "problema de ódio a resolver". A radicalidade deste livro se afirma através desta "visão vertical-abissal" em que memória e montagem são pistas deste crime "antigo, circulante, utilizável".

    Em oposição a certa crítica que insiste na sua ilegibilidade, em "Photomaton & Vox" Herberto Helder nos permite ler/ver o seu método, no qual prosa e poesia transitam livremente no "diafragma imaginário", contribuindo para o entendimento de sua máquina lírica –abertura para todos "os riscos da escrita".

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