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    CRÍTICA

    Livro 'Acre' põe classe média como refém de seu Velho Oeste

    MANUEL DA COSTA PINTO
    COLUNISTA DA FOLHA

    05/08/2017 02h05

    Margaret Gibbons/Divulgação
    A escritora Lucrecia Zappi, que lança pela editora Todavia seu segundo romance, 'Acre
    A escritora Lucrecia Zappi, que lança pela editora Todavia seu segundo romance, 'Acre'

    ACRE (bom)
    AUTORA Lucrecia Zappi
    EDITORA Todavia
    QUANTO R$ 44,90 (208 págs.); R$ 29,50 (e-book)

    *

    O título "Acre" se refere ao Estado da região norte. Mas também remete, como lembra o narrador deste livro de Lucrecia Zappi, à unidade de medida agrária.

    Os dois sentidos aparecem vinculados a contextos sociais que vão se insinuar de modo sorrateiro numa trama de ciúme obsessivo, até tomarem o centro da narrativa.

    Em seu segundo romance, a autora cria um pútrido veio subterrâneo que liga o inferno conjugal às paranoias de classe, manejando com habilidade dois planos narrativos.

    No primeiro, temos o narrador Oscar e sua mulher, Marcela.

    Depois de viverem numa quitinete do centro de São Paulo, eles moram num apartamento da Vila Buarque –bairro onde Oscar crescera e que virou símbolo de uma classe média que, antes próspera, agora divide o espaço com craqueiros e travestis.

    Pequenos empresários, eles acabam de reformar o apartamento e comprar o imóvel contíguo, pertencente a uma senhora que vive em semi-indigência e desperta um misto de piedade, implicância e culpa no casal, que consente que ela continue morando ali.

    TENSÃO

    A chegada de Nelson, filho da vizinha, que vivera no Acre metido em negócios suspeitos, deflagra a tensão entre Oscar e Marcela.

    Os três haviam se conhecido durante a adolescência em Santos, onde se envolveram em disputas entre gangues de surfistas e traficantes que eram, também, disputas amorosas.

    O retorno do forasteiro com quem a mulher tivera um caso, e que agora é seu vizinho, desperta ciúmes doentios no narrador, mas também abre um segundo plano narrativo, para além do entrecho amoroso.

    Os pequenos atos de delinquência cometidos em Santos –revividos em flashbacks saborosos para quem foi jovem nos anos 1980 (maconha do "verão da lata", bandas de rock emergentes, o fantasma da Aids freando o idílio contracultural)– se transformam, no Brasil de hoje, em signo da catástrofe sistêmica.

    Se a vizinha Vera tem nostalgia dos acres de terra que um dia possuíra, seu filho Nelson fugiu do Acre trazendo no encalço um boliviano que se imiscui na vida do prédio e faz a classe média ressentida e aterrorizada mostrar os dentes.

    MEXERICOS

    Acre
    Lucrecia Zappi
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    Numa cena onírica de errância pela madrugada no centro da cidade, o narrador será testemunha e cúmplice de atos de violência física e simbólica cometidos pelo síndico do prédio –médico que, tão logo despe seu avental, desvela também o rosto xenófobo e homofóbico por trás da cordialidade que mitiga assimetrias sociais, além de nele inocular o vírus da suspeita e engatar o episódio de suposto adultério no trilho do crime.

    Entre mexericos de condomínio –é isso que nos diz o romance de Lucrecia Zappi– eclodem recorrências psicossociais que fazem da classe média brasileira refém do Velho Oeste que ela mesma criou. Seja no Acre, seja no quarteirão ao lado.

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