• Ilustrada

    Saturday, 18-May-2024 16:58:00 -03

    CRÍTICA

    Aguinaldo José Gonçalves faz jornada poética entre ver e não ver

    NOEMI JAFFE
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    23/08/2017 02h00

    Marcus Leoni/Folhapress
    Aguinaldo José Gonçalves no lançamento do livro 'Nove Degraus para o Esquecimento
    Aguinaldo José Gonçalves no lançamento do livro 'Nove Degraus para o Esquecimento'

    NOVE DEGRAUS PARA O ESQUECIMENTO (muito bom)
    AUTOR Aguinaldo José Gonçalves
    EDITORA Ateliê Editorial
    QUANTO R$ 78 (144 págs.)

    *

    No conto "O Espelho", de Guimarães Rosa, um narrador, depois de muito buscar sua verdadeira imagem no espelho, começa a ver um esboço de figura, uns traços, uma quase luz. Aguinaldo Gonçalves, que tanto deu a ver a tantas pessoas - ensinando literatura há mais de 40 anos –sofre agora de uma doença ocular, no momento em que lança seu mais novo livro "Nove Degraus para o Esquecimento".

    E é aqui que o lemos –em chave claramente autobiográfica, reconhecendo-se e ao mundo como se pela primeira vez. Vendo, com sua pouca visão, as coisas sumindo e nascendo: "O esboço do rosto, o inacabado, a ranhura da orelha (...)/ as feições do vir-a-ser."

    Vamos gradualmente, ao longo dos 51 poemas deste livro e das imagens que vão se desfazendo aos nossos olhos, também tateando o passado e o futuro, num mundo em que a poesia é a chave dos tamanhos, a chave para entrar em qualquer lugar. Sem abdicar de uma visão terrível do real, essa poesia como que propõe um tempo novo, possível, em que quase-ver seja a melhor parte de cada um: "dessa goma de mascar tão inda e vinda na fina marca da saída/ para o indesejável porvir que é a morte finda/ e para o eterno deseja da vida-ainda".

    Aguinaldo vem de Buritama, no interior fundo de São Paulo e, por mais que tenha vivido em São Paulo durante muitos anos e venha atuando como professor universitário em São José do Rio Preto também há décadas, Buritama está sempre ali, na terra e nos fiapos de algodão, no bule azul, nos gravetos e na estopa.

    Mas o que encanta é ler a estopa fixada em Matisse, o graveto em Rimbaud e constatar que sua poesia é combinação inesperada de signos: um trem que vem de lá, da raiz de São Paulo, mas que faz parada na Paris do século 19 para chegar na cidade: "pela identidade me desfaço/ olho pelas frestas e me vasculho/ mas o estar aqui - estando ali/ finca estaca. E eu fico assim. Quase absoluto". Ou, como diz outro poema, "terra e fiapos de algodão, tudo com bisturi de cirurgião."

    Nove Degraus para o Esquecimento
    Aguinaldo José Gonçalves
    l
    Comprar

    Acompanhando os poemas, um grupo de pinturas também segue um caminho de dissolução, em que as imagens, como as palavras, vão perdendo contornos fixos e, com isso, ganhando densidade.

    Trata-se mesmo de uma jornada entre ver e não ver, em que não ver, ou ver mal, muitas vezes pode ser mais iluminador do que a nitidez. São nove degraus para o esquecimento, em que a memória vai se diluindo, esfumaçando, até atingir, quem sabe, um décimo degrau, onde se chega finalmente à palavra final, a maior entre todas: o silêncio.

    NOEMI JAFFE é crítica literária e autora de "Não Está Mais Aqui Quem Falou" (Companhia das Letras).

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024