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    Marido de tradutora apontada como Elena Ferrante lança livro no Brasil

    MAURÍCIO MEIRELES
    COLUNISTA DA FOLHA

    26/08/2017 02h00

    Reprodução/Instagram
    O italiano Domenico Starnone
    O italiano Domenico Starnone

    O italiano Domenico Starnone nunca mais teve paz.

    Mesmo sendo um dos autores mais importantes de seu país, a existência dele como artista foi atada a um mistério: a verdadeira identidade de Elena Ferrante.

    Basta olhar como a crítica internacional recebeu "Laços", romance que ele lança agora no Brasil.

    As resenhas tornaram-se uma busca por pistas escondidas –e logo viram-se semelhanças entre esse livro e "Dias de Abandono", de sua compatriota. As semelhanças passam pelo tema –o adultério–, imagens e personagens (veja algumas no quadro nesta página).

    A desconfiança não é vazia. Há dez anos, um grupo de físicos e matemáticos colocou os livros de Ferrante em um software de análise de texto –e o computador disse ser "alta" a probabilidade de a autora misteriosa ser Starnone.

    Para piorar, no ano passado, o jornalista Claudio Gatti divulgou os resultados da investigação que realizou a fim de descobrir a identidade da autora de "A Amiga Genial".

    Por meio de registros imobiliários e financeiros, ele provou um crescimento no patrimônio da tradutora Anita Raja e nos pagamentos feitos a ela pelas Edizioni E/O, casa que publica os livros de Ferrante. O incremento nos valores pagos, bem acima da média de mercado para um tradutor, coincidiam com o sucesso dos livros da italiana.

    Anita Raja –surpresa!– é a mulher de Starnone. E aí?

    "Não sou Elena Ferrante e tenho muito pouco interesse nesse tipo de pergunta. Deixemos disso", diz o escritor à Folha, por e-mail.

    O pedido é justo. Afinal, tudo isso são curiosidades extraliterárias.

    Sim, "Laços", pode até também ter em seu centro de gravidade um homem que abandona a família por uma mulher mais nova, como em "Dias de Abandono". Mas é um livro cujas qualidades estão mais na sua particularidade do que na semelhança com a obra de Ferrante.

    Para começo de conversa, o romance escrito por ela está centrado no desespero de uma mulher deixada. "Laços", por sua vez, está mais interessado no poder destrutivo das relações familiares e na tentativa de reconciliação.

    "As feridas deixam cicatrizes, e cicatrizes são marcas que reativam a memória. Isso é um obstáculo permanente ao perdão", diz Starnone.

    No livro, contado sob três pontos de vista –da mulher, do marido e dos filhos–, o casal, já reconciliado, um dia encontra seu apartamento revirado. E os objetos espalhados começam a despertar as memórias dolorosas.

    O cenário surge como uma metáfora das ruínas sobre as quais os personagens vivem.

    TRADIÇÃO E TRAIÇÃO

    A tradição literária é pródiga em adúlteras ilustres, mas é incomum um autor escrever sobre a infidelidade masculina. Muito menos vista como algo desagregador, como faz o italiano.

    "Nessa grande tradição literária, o casamento e a família são sempre corroídos dramaticamente pela infidelidade feminina", diz ele, acrescentando que o adultério masculino era visto como um "fato da natureza", sem interesse literário.

    "Quis mostrar que a traição masculina não é uma travessura sem consequências. A literatura focou mais nos excessos das mulheres traídas ou na tendência 'inerente' a elas de cometerem adultério."

    Ler Starnone é olhar pelo buraco da fechadura, porque o autor observa as relações familiares de perto.

    Para o autor, a família é onde aprendemos a esconder nossa animalidade.

    "Mas também é o lugar onde descobrimos que nossa natureza animal provoca fissuras no edifício do comportamento humano. Por isso a família é muito estimulante do ponto de vista narrativo", afirma Starnone.

    Há ainda um olhar para a história social da família.

    O protagonista, Aldo, deixa mulher e filhos e se dá a desculpa de que é errado contrariar seus desejos –a traição acontece no fim dos anos 1960, enquanto a revolução nos costumes corria solta.

    O tom do autor é pessimista –não por achar que a mudança não fosse necessária, mas porque ela ainda não acabou e, segundo ele, vivemos dentro das mesmas estruturas, agora em colapso.

    "As crianças sofriam na velha família patriarcal e sofrem ainda mais em sua dissolução. Elas são o elo mais fraco. Se amadurecemos mal dentro de instituições sufocantes, cresce-se ainda pior quando tais instituições são substituídas por ruínas."

    CASA EM RUÍNAS

    A própria casa destruída é um personagem em si, interagindo o tempo inteiro com marido, mulher e filhos –e é um impedimento para que eles esqueçam qualquer coisa, criando uma atmosfera irrespirável de ressentimento.

    De onde vem o interesse tão grande por esse cenário?

    Laços
    Domenico Starnone
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    "Não sei a resposta. Quando criança, 'A Toca', um conto de Kafka, me impressionou muito. Talvez a sensação de segurança e, ao mesmo tempo, de insegurança que os apartamentos me causam tenha uma origem literária", diz.

    A memória é um dos assuntos mais importantes do romance. Lembranças frustrantes e cheias de rancor estão sempre ancoradas em objetos. O leitor pode pensar em Proust, mas aqui a relação entre eles e a memória é muito diferente.

    Em vez de servirem para resgatar o "tempo perdido" de forma involuntária, os objetos são escondidos de propósito para afastar lembranças ou guardados para materializar o que não some da mente. Em "Laços" ninguém esquece, ninguém perdoa.

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