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    ANÁLISE

    Disco foi 1ª abordagem de Gil da riqueza e da miséria de ser negro

    LUIZ FERNANDO VIANNA
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    07/09/2017 02h00

    Divulgação
    Cantor Gilberto Gil à época do disco 'Refavela',em 1977
    Cantor Gilberto Gil à época do disco 'Refavela', em 1977

    Da chamada "trilogia do Re" de Gilberto Gil, "Refavela" é o disco que chega mais inteiro às quatro décadas de existência.

    "Refazenda" (1975) abriga canções de beleza atemporal: "Tenho Sede", a faixa-título, "Pai e Mãe", "Retiros Espirituais", "Lamento Sertanejo", "Meditação"...

    Como projeto, ficou um pouco atado a seu tempo de origem, a começar pelo uso do violão ovation, então em voga.

    E o conceito "refazenda" olhava manifestamente para o passado: voltar ao solo sertanejo, matriz de Gil, pisando-o com um pé na sanfona de Dominguinhos e o outro nas experiências sonoras e espirituais vividas naquele momento.

    Em "Realce" (1979), as bases afro-baianas-cariocas ganhavam temperos mais pop, a ponto de Gil maltratar um samba-canção de Dorival Caymmi, "Marina".

    "Quanto mais purpurina, melhor", pregava a faixa principal, assumindo o salto no presente, aquele das discotecas e dos sintetizadores, hoje relíquias.

    Ainda que pudesse não almejar o futuro, mirando mesmo o "Aqui e Agora" (título da sempre bela canção), "Refavela" acertava em alvos sociais e musicais que se tornariam mais nítidos com o tempo.

    O termo "refavela" traduzia a fragilidade do "salto que o preto pobre tenta dar", com os conjuntos habitacionais virando novas favelas (Cidade de Deus e similares) e a escravidão se perpetuando sob disfarces ou descaradamente. Nada mais atual em 2017.

    Como se sabe, Gil concebeu o trabalho após uma viagem à Nigéria. A África das forças sonoras e religiosas –replicadas na Bahia e no disco pelos blocos Ilê Ayê e Filhos de Gandhi– contrastava com a pobreza material, agora exportada em barcos superlotados de refugiados.

    A música africana de Fela Kuti, King Sunny Adé e tantos outros, somada a manifestações que também se internacionalizaram (o reggae, o rap), tornou-se ingrediente fundamental da cultura pop. "Refavela" sinalizava isso.

    A versão de "Samba do Avião" rasgava a delicadeza da composição de Tom Jobim, vestindo-a com o funk que dominava os clubes suburbanos do Rio de então –e que depois se firmaria como som e signo das favelas e refavelas.

    Nos últimos 40 anos, Gil voltou várias vezes a essas referências, em composições esparsas ou em discos inteiros. "Refavela" foi sua primeira abordagem sistematizada –e extremamente prazerosa de se ouvir– da riqueza e da miséria de ser negro no Brasil, na África, na Jamaica, nos Estados Unidos.

    Em tempos de Donald Trump e outros temores, vale muito recordar.

    *

    FAIXA A FAIXA

    "Refavela" - resume o conceito do disco e evoca a paisagem nigeriana e sua semelhança com as periferias brasileiras, além de citar o movimento Black Rio

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    "Ilê Ayê" - também conhecida como "Que Bloco É Esse?", a canção do bloco afro baiano Ilê Aiyê se tornou um dos sucessos do disco

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    "Aqui e Agora" - uma das muitas canções de Gil sobre a importância do autoconhecimento; "a letra é uma colagem de fragmentos de manifestações mentais dissociadas", escreveu ele

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    "No Norte da Saudade" - xote com clara influência do reggae, é uma canção sobre a rotina de turnê; única composição coletiva do disco (de Gil com Perinho Santana e Moacyr Albuquerque)

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    "Babá Alapalá" - uma das que foram criadas antes da viagem para a Nigéria, fala dos ancestrais do candomblé e foi inspirada pela visita de Gil a um terreiro em Itaparica

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    "Sandra" - a mulher de Gil à época é uma das muitas citadas na letra, que fala da internação judicial a que ele foi submetido após ter sido preso com maconha em Florianópolis

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    "Samba do Avião" - o clássico de Tom Jobim aparece em versão funkeada, a la Black Rio; causou indignação em parte da crítica

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    "Era Nova" - composta para Roberto Carlos e rejeitada (como, depois, seria "Se Eu Quiser Falar com Deus"), é outra das canções filosóficas

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    "Balafon" - inspirada pelo instrumento de percussão que a nomeia e que foi trazido da Nigéria pela banda

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    "Patuscada de Gandhi" - do repertório do Afoxé Filhos de Gandhi, é outra canção carnavalesca baiana. Patuscada, nos dicionários, é "folia animada, divertida e barulhenta; farra"

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