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    Crítica

    Em ensaio, filósofo Roger Scruton investiga bases da humanidade

    JOÃO PEREIRA COUTINHO
    COLUNISTA DA FOLHA

    08/09/2017 02h08

    Policy Exchange
    13 de marco de 2012 Roger Scruton speaking about his book "Green Philosophy"
    Roger Scruton em palestra sobre seu livro "Green Philosophy"

    A ALMA DO MUNDO (ÓTIMO)
    AUTOR Roger Scruton
    EDITORA Record
    QUANTO R$ 44,90 (238 págs.)

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    No século 19, depois de Charles Darwin ter sugerido que os nossos antepassados estavam no jardim zoológico, a sociedade vitoriana reagiu com choque e pavor. E ficou célebre a declaração do premiê Benjamin Disraeli: entre os anjos e os macacos, ele continuaria do lado dos anjos.

    Esta proclamação entende-se do ponto de vista estético –e Disraeli, primeiro que tudo, era um esteta. Mas, filosoficamente falando, a contenda sempre me pareceu absurda: não duvido que os homens descendam dos símios; mas a questão fundamental é saber por que motivo os homens não se comportam como símios (a maioria, pelo menos).

    Uma caixa craniana maior é parte da explicação; mas se admitirmos que só o evolucionismo detém a chave da nossa "humanidade" (ou será da nossa "animalidade"?), é preciso questionar igualmente qual a vantagem evolutiva que nós, pobres macacos, obtemos do belo, da verdade e do bem.

    Eis o tema de "A Alma do Mundo", um dos mais belos ensaios de Roger Scruton, em tradução notável de Martim Vasques da Cunha. Será que podemos reduzir o homem a meras explicações biológicas? Ou existem dimensões que vão além do reducionismo científico?

    Ponto de ordem: Scruton não nega que a explicação dos nossos processos neuronais ou orgânicos são uma parte importante da história. Mas eles não constituem toda a história. No "dualismo cognitivo" com que navegamos pela experiência humana, é preciso entender o homem. E "entender" significa olhar para ele, não só como um "animal humano" mas como uma "pessoa humana", dotada de consciência e autoconsciência.

    Se assim é, a pretensão científica de determinar que nada existe "além" do que pode ser cientificamente provado é uma visão estreita do mundo (e, irônica ou paradoxalmente, uma rendição epistemológica).

    Confrontados com uma escultura ou uma sinfonia, não ficamos atraídos apenas pela cristalografia do mármore ou por uma análise acústica e matemática do som. Existe no ser humano um "mundo formado pela nossa consciência" (Lebenswelt), um mundo que existe "por trás das nossas negociações cotidianas": sentir a "presença" desse mundo e sentirmo-nos "presentes" nele talvez não possa ser rigorosamente classificado ou explicado por uma qualquer teoria científica. Mas negar a sua "veracidade" (e a verdade desse "quale", dessa "essência interior de uma coisa") é construir um retrato incompleto do que somos.

    Como escreve Scruton, "a fé religiosa, o amor erótico, a amizade, os laços familiares e o deleite da arte, música e literatura" transcendem as questões de sobrevivência e reprodução –e inscrevem-se na intimidade de um encontro sujeito-com-sujeito. O maior desses encontros, que suplanta qualquer religião organizada, é para Scruton o encontro do fiel com a presença de Deus –"o ponto final da nossa busca pelas razões".

    A Alma do Mundo
    Roger Scruton
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    No século 19, quando Disraeli expressava sua lealdade a anjos, o objetivo do escritor e político inglês não era tanto negar a teoria de Darwin –mas negar o que já era inevitável: um certo "desencantamento" do mundo (ou, talvez de forma mais rigorosa, uma "dessacralização" do mundo, afastando do nosso horizonte a dimensão "sagrada" da singularidade humana).

    Roger Scruton, no tom sereno que foi adquirindo nos últimos anos, procura relembrar esse horizonte perdido. Não para colocar os anjos no lugar dos macacos. Mas para afirmar que ambos têm lugar na mesa da aventura humana.

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