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    Crítica

    Com lirismo sórdido, livro retrata quinteto que vive na sarjeta

    MANUEL DA COSTA PINTO
    COLUNISTA DA FOLHA

    09/09/2017 02h15

    Marcelo Justo/Folhapress
    Isis Valverde posa para a capa da revista "Joyce Pascowitch" de setembro
    O escritor mineiro Evandro Affonso Ferreira na Livraria da Vila do shopping Higienópolis, em São Paulo

    NUNCA HOUVE TANTO FIM COMO AGORA (ÓTIMO)
    QUANDO Evandro Affonso Ferreira
    EDITORA Record
    QUANTO R$ 39,90 (160 págs.)

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    Nau dos indigentes que replica a nau dos insensatos, tendo a bordo não os loucos (eternizados no quadro de Bosch) que navegavam os rios do imaginário medieval, mas um cortejo de "náufragos do asfalto" à altura dos pesadelos boschianos.

    Nunca Houve Tanto Fim Como Agora
    Evandro Affonso Ferreira
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    Assim é "Nunca Houve Tanto Fim como Agora", novo romance de Evandro Affonso Ferreira. Com realismo sádico e lirismo sórdido, destilado dos miasmas urbanos, o mineiro de Araxá sintetiza as linhas de força de sua literatura.

    O livro é narrado por Seleno, ex-menino de rua que, agora na pele de um modesto professor, relembra em parágrafos breves as andanças de uma farândola de funâmbulos. Trocando em miúdos, um quinteto de enjeitados sociais e existenciais que se equilibram no meio-fio das sarjetas, sob marquises e viadutos.

    Do tal quinteto só conheceremos três personagens: Eurídice (sarcástica ninfa do esgoto), Ismênio (dotado de sensibilidade e clarividência suicidas) e o próprio narrador. Os outros dois integrantes da "comunidade nômade cujo nome é Relento" não são nomeados -e talvez por isso sejam mais reais do que seus duplos de nomes mitológicos.

    Afinal, todos eles são ainda menos do que os "ex-homens" de Gorki, aqueles vagabundos despencados na ralé russa. Em nosso sistema escravagista (que superou com galhardia e longevidade a servidão czarista), já morreram na partida: roubam fotos de família em jazigos para compor genealogias vicárias, mas nem sequer sabem suas datas de nascimento.

    "Desdém generalizado é aniquilamento implacável", diz o narrador. Para esses maltrapilhos fedorentos, que vivem entre rapinagens e coitos caninos, pior do que a condição de "ácaros topográficos", "fulminados por olhares dedetizadores", é a indiferença que os torna invisíveis: "O não olhar, o quase olhar deles todos, também era torturante para nós: configurava nossa, por assim dizer, não existência", diz o narrador sobre a cegueira da cidade para o lumpesinato das ruas.

    Ao criar essa fauna remelenta, Ferreira combina procedimento de livros anteriores. De "Erefuê" ou "Catrâmbias!", a exumação de palavras vetustas, caídas em desuso, para exprimir a degenerescência em vida de seus desvalidos -como ao descrever seus indigentes mirins como "zumbis zuruós, zoropitós".

    E, de "Minha Mãe se Matou sem Dizer Adeus" ou "O Mendigo que Sabia de Cor os Adágios de Erasmo de Rotterdam", um adensamento do fôlego narrativo ao compor a litania de seus fracassados, sempre tendo como subtexto referências mitico-literárias -como nas passagens em que o narrador sonha em buscar sua Eurídice nas profundezas do inferno e, como um Orfeu dos becos, recitar poemas de Anna Akhmátova ou Hilda Hilst.

    A diferença, aqui, é que o descompasso (característico da obra pregressa do escritor) entre o universo capenga de suas personagens e suas citações eruditas se explicita como jogo ficcional nas últimas cinco linhas do livro -torneio estilístico que esbofeteia o leitor ao sugerir que nos falta a empatia do narrador com o "abandono épico" que produziu esse romance notável.

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