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    Crítica

    Biografia mostra sambista Vadico além do parceiro Noel Rosa

    ALVARO COSTA E SILVA
    COLUNISTA DA FOLHA

    11/09/2017 02h15

    Revista 'O Cruzeiro'
    Mostra 'Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira', no Santander Cultural, em Porto Alegre
    Oswaldo de Almeida Gogliano, o Vadico, num bar da Vila Isabel, onde viveu seu parceiro Noel Rosa

    PRA QUE MENTIR? (MUITO BOM)
    AUTOR Gonçalo Junior
    EDITORA Noir
    QUANTO R$ 59,90 (412 págs.)
    LANÇAMENTO seg. (11), às 18h, no Madame Aubergine (r. Carla, 25, Itaim Bibi, São Paulo)

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    Que ano, para a música brasileira, foi 1910! Nasceram nele os compositores Claudionor Cruz, Custódio Mesquita, Haroldo Lobo, Adoniran Barbosa, Nássara e Nelson Cavaquinho (este, na verdade, era "gato": veio ao mundo em 1911, mas teve o registro de nascimento falsificado), os cantores Luís Barbosa, Jorge Veiga e Manezinho Araújo, o flautista Copinha e o tango "Odeon", de Ernesto Nazareth. Além disso, a bebê Carmen Miranda desembarcou no Brasil, vinda de Portugal.

    Não por último, também foi em 1910 que nasceram Noel Rosa e Vadico. Tinha de ser. Os dois eram as pessoas certas, na hora e no local certos, e, até a morte prematura do primeiro aos 27 anos incompletos, se provariam a fome com a vontade de comer. Conheceram-se nos estúdios da Odeon, em outubro de 1932, apresentados pelo compositor e empresário Eduardo Souto. Logo fizeram o samba-canção "Feitio de Oração".

    Em seguida veio "Feitiço da Vila", incorporada à famosa polêmica de Noel Rosa com Wilson Baptista, mas que vai além desta, imortalizando o bairro de Vila Isabel como reduto do samba. O esquema – ou seja, melodia do pianista Vadico, letra moderna de Noel– encaixou à perfeição, e ficaria ainda melhor na terceira vez: "Conversa de Botequim", a crônica de um tempo do Rio perdido. Três músicas, três obras-primas, um início de parceria alucinante.

    Ao todo fizeram 12 canções, incluindo uma marchinha publicitária. As contas são do jornalista e pesquisador Gonçalo Júnior, que acaba de publicar um alentado perfil biográfico de Vadico. O título, "Pra Que Mentir?", é o mesmo de mais uma composição excepcional da dupla, que só seria gravada, pelo "caboclinho querido" Silvio Caldas e pela orquestra do maestro Fon-Fon, em setembro 1938, mais de um ano depois da morte de Noel.

    A motivação do autor é mostrar que Vadico foi muito mais do que um parceiro de Noel, mesmo que tenha sido o maior deles. Ao fim do livro, emerge um novo Vadico, mais completo e humano. No entanto, a impressão de que ele foi o parceiro perfeito de Noel continua "" e isso, claro, não o desmerece.

    Nascido no Brás paulistano, Oswaldo de Almeida Gogliano fez sua primeira apresentação profissional como pianista aos 16 anos, idade em que começou a compor. Sua atividade profissional como músico, compositor, arranjador e maestro foi intensa, prejudicando-lhe a saúde. Fumando e bebendo muito, varando noites em boates, sofreu três enfartes. O último o matou, antes de completar 52 anos.

    Para se ter uma ideia do duro que deu na vida: em 1959, a bossa nova fervendo, acompanhou ao piano, na boate Plaza, em Copacabana, um cantor ainda desconhecido cuja maior característica era ser um descarado imitador de João Gilberto. O nome dele? Roberto Carlos.

    Admirado por Ary Barroso e Tom Jobim, Vadico morou quase 15 anos nos EUA, trabalhando com Carmen Miranda e o Bando da Lua em Hollywood (tocando pandeiro nos filmes!) e na companhia da bailarina negra Katherine Duhran. Compôs maravilhas com Vinicius de Moraes ("Sempre a Esperar") e Marino Pinto ("Prece").

    Sofisticado, preferia a elaboração musical. Deixou cerca de 80 músicas, entre as quais algumas peças eruditas. Seu forte era o samba-canção. Daí a identificação com Noel, uma liga que o livro só faz deixar mais evidente. Não há índice onomástico –pecado que um editor não pode cometer em obra de referência–, mas um levantamento, no "olho", mostra Noel Rosa sendo citado em 70% das páginas.

    O biógrafo conta que a revalorização do poeta da Vila na década de 1950, após um período no limbo, animou Vadico a voltar ao Brasil. Outra vontade era entrar na Justiça e fazer com que seu nome fosse incluído como coautor das músicas que fez com... Noel Rosa!

    Era-lhe um direito que não estava sendo respeitado pelas gravadoras. Vadico foi até ao programa da TV Tupi "Um Instante, Maestro!", de Flávio Cavalcanti, posando de vítima e ouvindo o apresentador sensacionalista acusar de desonesto o finado... Noel Rosa!

    Poderia ter virado esse jogo. Bastava matar a bola no peito e chutar para o gol quando Vinicius de Moraes lhe propôs, em 1956, que musicasse a peça "Orfeu da Conceição". Como se sabe, a tarefa acabou nas mãos de Tom Jobim. Ou Vadico não se sentiu à altura da missão ou condições de saúde –cansaço permanente e dores no peito– não lhe permitiram.

    Se aceitasse, quem sabe teria sido um parceiro ideal, também, de Vinicius.

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