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    CRÍTICA

    Em 'Uma Confissão', Tolstói faz forte debate sobre o alcance da fé

    REINALDO JOSÉ LOPES
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    16/09/2017 02h00

    R. Thiele/Reuters
    O escritor russo Tolstói em foto vestido de camponês
    O escritor russo Tolstói (1828-1910) em foto vestido de camponês

    UMA CONFISSÃO (muito bom)
    AUTOR Liev Tolstói
    EDITORA Mundo Cristão
    QUANTO R$ 21,90 (128 págs.)

    *

    A fama de peso-pesado da literatura russa fez com que Liev Tolstói (1828-1910) fosse citado até nos desenhos animados do Snoopy (Charlie Brown vive tentando ler, sem muito sucesso, as quase 1.500 páginas de "Guerra e Paz", obra magna do autor).

    Com menos de um décimo do tamanho de "Guerra e Paz" e uma linguagem direta, despida de todo adorno, "Uma Confissão" não parece ter nada de desafiador –mas é possível que seja o texto mais poderoso da carreira de Tolstói.

    De uma maneira que espelha os relatos de outros grandes místicos da história, "Uma Confissão" é, em parte, o relato de uma "noite escura da alma" –ou seja, uma experiência de ausência abissal de sentido, de desespero em sua forma mais pura– e de como sair dela.

    Ao contrário de outros místicos, porém, Tolstói não experimenta esse abismo como uma perda temporária de seu relacionamento com Deus e com o sentido da vida, mas como algo que precede a descoberta da fé verdadeira.

    SUCESSO SUICIDA

    A ironia é que a noite escura de Tolstói vem no auge de seu prestígio e sucesso financeiro, com vida familiar estável. Ele conta que abandonara qualquer crença religiosa assim que chegou à idade adulta, adotando um credo secular de moldes vagamente iluministas: homens de pensamento elevado e habilidade literária, como ele, teriam o papel de levar o conhecimento às massas e fomentar o progresso.

    Por volta dos 50 anos de idade, porém, nada disso parecia importar mais. Tolstói conta ter percebido que nem a arte nem a ciência "progressistas" do final do século 19 davam conta de explicar as razões da existência –ou, no máximo, davam respostas que correspondiam ao vazio, à falta de sentido.

    Ora, se esse vazio for mesmo a resposta para o sentido da existência, raciocinou ele, o melhor é se matar de vez –o que o levou a passar meses acossado por pensamentos suicidas.

    O escritor só teria escapado da morte autoinfligida ao se dar conta de que a imensa maioria das pessoas mundo afora, e em especial os pobres e oprimidos, como os mujiques (a massa camponesa da Rússia), encontravam na fé o sentido da vida. Isso o levou a reexaminar a ideia da crença em Deus e, em última instância, a abraçá-la mais uma vez.

    Divulgação
    O escritor russo Liev Tolstói
    O escritor russo Liev Tolstói

    É tentador resumir a oposição que Tolstói enxergava entre religião organizada e fé dita verdadeira como o duelo entre dois sufixos gregos: ortodoxia (a "opinião correta" sobre Deus) versus ortopraxia (o jeito certo de agir ou viver a vida).

    Ironicamente, o escritor foi criado como membro da Igreja Ortodoxa Russa, herdeira direta da tradição cristã grega, fundada por missionários da antiga Constantinopla –um dos grandes centros de especulação teológica sofisticada do cristianismo desde a Antiguidade.

    Mesmo depois de sua experiência de conversão, Tolstói confessa sua contínua dificuldade em aceitar dogmas teológicos formais, como o da transformação mística do pão e do vinho no corpo e no sangue de Cristo.

    Igualmente difícil para ele é engolir a distância que via entre a adesão verbal de membros da elite russa à fé cristã e o comportamento nada cristão de tais pessoas.

    O autor acaba por fazer as pazes com ao menos alguns elementos do cristianismo ortodoxo ao verificar que, na vida dos mujiques, haveria um casamento harmonioso entre a fé sincera e uma vida de simplicidade.

    Essa constatação levou o autor a buscar um estilo de vida cada vez mais ascético conforme envelhecia, inclusive se desfazendo de propriedades da família.

    BURACOS

    Para quem nunca passou por crise semelhante à enfrentada por Tolstói, do ponto de vista do niilismo confortável do século 21, é fácil achar buracos no edifício reconstruído da fé do autor.

    O mais óbvio deles talvez seja o impulso de romantizar a religiosidade dos mujiques, ou de qualquer outra população de desvalidos –em contextos como esses, a mesma crença que fomenta atos impressionantes de solidariedade entre membros de um grupo é capaz de desencadear a intolerância mais brutal contra quem não pertence a esse coletivo.

    Também se pode questionar o impulso do escritor russo de se agarrar ao conceito de Deus como resposta para o enigma da existência sem levar em conta que essa escolha cria outros problemas lógicos e filosóficos –como a dificuldade de explicar a própria origem de uma divindade suprema, por exemplo.

    Tais ressalvas, porém, não diminuem em nada o desafio lançado pelo texto, nem a fome e a sede de Absoluto que dominam suas páginas.

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