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    CRÍTICA

    Antologia 'Esta Vida' joga luz sobre lado B do poeta Raymond Carver

    JORGE HENRIQUE BASTOS
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    16/09/2017 02h00

    Bob Adelman/Corbis
    o escritor americano Raymond Carver (1938-1988) em foto de 1984 nos Estados Unidos
    o escritor americano Raymond Carver (1938-1988) em foto de 1984 nos Estados Unidos

    ESTA VIDA (muito bom)
    AUTOR Raymond Carver
    TRADUTOR Cide Piquet
    EDITORA 34
    QUANTO R$ 49 (208 págs.)

    *

    Quando, nos anos 1980, o ficcionista e poeta Raymond Carver começou a ascender no panorama literário americano, era a época Reagan. Ficara para trás o percurso do autor que amargara mais de 20 anos de alcoolismo, dois filhos, casamento aos 18 anos, quatro internamentos, diversos trabalhos menores e o drama da sua família fulminada pelos resquícios da depressão econômica de 1929.

    Nascido no Oregon, em 1938, ele situou sua obra em personagens provenientes de uma América que não vemos nas notícias, os vencidos da vida, os deserdados e excluídos do sonho americano.

    Mais conhecido como contista, sua ascensão ocorreu na última década da sua vida, quando foi considerado um dos mais exímios contistas, inserido naquela tradição representada por autores como O. Henry (1862-1910), Ernest Hemingway (1899-1961) e John Cheever (1912-1982).

    As frustrações, os desencontros e a perdição do cotidiano urbano perpassam pelo seu típico "realismo sujo", reproduzindo o mundo e a vida de pessoas com cores vivas e pungentes.

    O seu minimalismo característico –segundo muitos críticos, limado pela argúcia do editor da "Esquire", Gordon Lish, que selou a carreira de muitos escritores– catapultou o autor rumo aos holofotes da literatura mundial.

    Após 20 anos encharcados em álcool, cigarros e muitos empregos instáveis, finalmente Carver obteve o reconhecimento literário.

    Mas havia uma parte do seu percurso que ainda permanecia quase oculta: a marca da sua poesia, com a qual ele estreou, no fim dos anos 1960.

    Na antologia que a editora 34 acaba de lançar, na tradução segura e equilibrada de Cide Piquet, conhecemos o lado B do autor que escreveu um dos livros de contos incontornáveis da literatura americana, "De que falamos quando falamos de amor" (aliás, obra batizada assim por Lish).

    O trânsito temático e estilístico que explorou estão presentes na sua poesia. É indiscutível o aspecto narrativo dos poemas, cuja tradução mantém com atenção adequada ao leitor em português, assegurando à leitura algo do que ele queria exprimir.

    Seu laconismo típico se ampara numa espessura melancólica perante o acontecimento do mundo, são infernos portáteis que personagens fracassados transportam, que as situações narradas representam. Há paisagens quase domésticas de um país, hoje, em tensão constante. Compartilham as frustrações de um sonho que nem sempre abrange todos. A América não é só casas amplas com jardins na frente, nem apartamentos de 500 metros quadrados.

    Era inevitável que reproduzisse em seus poemas o mundo do qual fez parte e viveu na pele, dos anos 1950 aos 1970.

    A armadura do seu discurso ficcional se completa nesses poemas, sabendo que ele defendia sua poesia como uma engrenagem que se entremeava com sua ficção.

    Para quem viveu uma vida instável e a infinidade de empregos que teve, tal vivência se refletiria de forma inevitável. Seus poemas falam de figuras com conflitos, frustrações, nostalgia e derrotas. É um genuíno catálogo em que pontuam bêbados, apaixonados, heróis frustrados. O sofrimento está presente, sem dramatismo ou sentimentalismo. É um país se expondo sob o esplendor de ruínas pessoais.

    Ele consegue catalisar a vida de pessoas que passam ao nosso lado, sofrem perto de nós. Uma legião de anônimos se insinua nesses poemas, tudo mesclado à sua biografia, exposto sem escrúpulos, tal como narra no poema "Sala de Autópsia" ou no "Vendedor de Enciclopédias" (sua primeira mulher, trabalhou como vendedora, entre muitos outros empregos, para ajudá-lo).

    É o ficcionista e o poeta se debatendo consigo mesmo, abraçando a dor e o desencanto, com sua crueza palpitando na realidade à nossa frente.

    Esta Vida - Poemas Escolhidos
    Raymond Carver
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    No fim da vida, Carver conseguiu se safar do alcoolismo, mas o câncer que minou seu pulmão foi implacável. Teve pouco tempo para viver a fama que começava a transformá-lo num escritor situado entre todos aqueles que fazem parte da vida ao rés do chão, se reconheciam naquelas histórias e foram traduzidas mundialmente.

    Coube à sua segunda mulher, Tess Gallagher, quando ele voltou a escrever após quatro anos de aridez, organizar o que nós podemos ler nesse livro, na segunda chance que ela o ajudou a ultrapassar.

    Era nada mais do que aquele rapaz de 19 anos descobrindo a literatura por acaso, se entregando a esse poder feito de palavras e imagens. Morreu em 1988, em Port Angeles, Washington, quando acabara de completar 50 anos.

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