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    Corporações tentam criar literatura global, diz crítico literário James Wood

    MAURÍCIO MEIRELES
    COLUNISTA DA FOLHA

    23/09/2017 02h00

    David Levenson/Getty Images
    James Wood, em 2004, no Hay Festival, no Reino Unido
    James Wood, em 2004, no Hay Festival, no Reino Unido

    O britânico James Wood, 51, é hoje um dos críticos literários mais influentes da língua inglesa -dono de um estilo que fala tanto à universidade quanto ao leitor comum. Professor na Universidade Harvard, nos EUA, ele escreve na revista "The New Yorker", cujo crivo literário é capaz de catapultar a carreira de um autor.

    Wood lança no Brasil "A Coisa Mais Próxima da Vida", um conjunto de quatro ensaios sobre literatura em que defende a crítica que "use tudo" -não à toa, o livro inclui memórias do autor, a música, a teologia e prega uma crítica mais livre e imaginativa.

    Em entrevista à Folha, por telefone, Wood falou sobre sua defesa de mais espaço de uma crítica de escritor em vez da hegemonia da crítica acadêmica, as tendências que vê na literatura contemporânea, o realismo e outros temas.

    Folha - Por que, como o sr. diz, a literatura é a coisa mais próxima da vida?
    James Wood- É uma frase que de um ensaio de George Eliot, do século 19, sobre o realismo alemão, em um trecho maravilhoso. Para ela, a literatura é um modo de expandir a experiência [humana].
    A frase tem um paradoxo que existe na literatura que admiro: ela é próxima da vida, revela algo sobre o mundo e as relações, mas ao mesmo tempo não é a vida em si. Os artistas criam essa distância.

    O sr. faz uma defesa da crítica de escritor em vez da crítica acadêmica. Por quê?
    Em parte, é uma questão de público. É claro que há um trabalho importante na academia, mas os professores tendem a falar para seus pares. Muito antes de se estudar literatura na academia, havia séculos de crítica feita por autores. Essa é a crítica que comecei a ler na adolescência, com George Orwell e Virginia Woolf.

    Mas não é apenas uma questão de público.
    Não. É todo um jeito de ser diferente. O tipo de crítica do qual eu falo é para viver o texto, através do texto, redescrevendo-o a fim de que o leitor viva outra vez a experiência. Você, como crítico, está no meio de uma corrente, tentando trazer o texto à vida outra vez, como ele foi trazido à vida diante de você pelo autor.

    Como crítico, o sr. gosta do tratamento dado por disciplinas como os estudos de gênero ou pós-coloniais?
    Como digo no penúltimo ensaio, defendo uma crítica que use tudo que há para ser usado. Devo estar aberto e curioso. Mas coloco ênfase na ideia de autonomia da obra de arte. É isso que me interessa: como é feita, o que há de único nela. Quero ler o que só a ficção pode fazer, o que não pode ser explicado por outro meio.

    Em seu livro anterior, o sr. faz uma defesa do realismo. Enquanto alguns o criticam como linguagem conservadora, há autores de sucesso, como Knausgard e Elena Ferrante, em constante diálogo com o formato. Como vê a questão?
    Na história literária, a cada 50 anos, um grupo de autores se une e ataca o realismo como conservador. [O autor francês] Alain Robbe-Grillet, em seu livro sobre o "nouveau roman", disse que as pessoas sempre atacam o realismo levantando a bandeira do seu próprio realismo, redefinindo-o.

    Essa queda pelo real diz algo sobre estar vivo hoje, é uma busca pela vida. O que eu gostaria é de expandir a definição de realismo. Estou mais interessado na vitalidade do texto do que em algo chamado realismo.

    Mas é um dever dos escritores buscar a constante inovação da forma?
    Voltemos ao Knausgard. Se o botarmos junto a Ferrante, vê-se que são dois autores com uma tremenda necessidade de encontrar a autenticidade. Knausgard é obcecado por isso. Nenhum dos dois se importa com a forma que essa busca vai tomar. No caso de Ferrante, ela é mais convencional na tetralogia napolitana. Eles não estão interessados em destruir as formas, estão em uma espécie de busca metafísica pelo autêntico.

    Embora diferentes em estilo, os dois provocam em muitos leitores um interesse na identidade do autor.
    Acho que isso é outra ameaça [à literatura], um jeito de evitar o artificial em um texto. Voltando à sua primeira pergunta: quero manter essas duas coisas [vida e ficção] em equilíbrio.

    Interesso-me pela busca de um autor pela verdade. Acho comovente e animador. Mas também me interesso pelo que descola um texto da realidade. O que o torna autônomo? Qual seu elemento de invenção?

    Knausgard oferece um grande pedaço da sua vida para inspeção pública. Os livros de Ferrante, se os fatos [sobre ela ser a tradutora Anita Raja] forem verdade, são inteiramente inventados. O mais empolgante é que sua autenticidade, a sensação que temos ao ler sobre Lila e Lenù, foi criada por alguém que não passou por aquilo.

    Como ficção verdadeira, nos dá a sensação de ser tão real quanto Knausgard.

    O mundo anglófono também descobriu recentemente o francês Édouard Louis, que também trabalha com a autoficção. Há algo maior aí?

    Não li o livro dele, mas tenho amigos empolgados. Louis e Knausgard representam o que está havendo com o vanguardismo hoje. Eles sentem insatisfação com as formas antigas -acho que estou me contradizendo-, não suportam mais inventar coisas e ter personagens atravessando tramas. Por isso, importam para sua obra a autobiografia. É algo muito interessante.

    Mas eu ainda sinto que há espaço na cultura para coisas descoladas do real. A linguagem desenha um círculo em torno de um assunto e foca sua atenção no que está dentro dele. Mas o círculo é uma espécie de resistência. Acho importante que a ficção seja sobre o mundo, mas sem se fundir com ele.

    Mas como a ficção deve lidar com a realidade, então?
    Isso é um desafio nos Estados Unidos, em que a realidade política é tão forte. É fácil para um escritor pensar: vou sobrecarregar minha ficção com essa realidade pesada. Mas creio que a boa ficção não pode fazer isso. Ela deve atuar como crítica e resistência a esse grande peso da realidade.

    O sr. não gosta de obras como a de Don DeLillo?
    Gosto de alguns aspectos. Ele é uma espécie de crítico pós-moderno, mas também um crítico do pós-modernismo. Ele está resistindo. Contudo algumas vezes seus textos têm essa sobrecarga da cultura, ele se torna demais uma luz da sociedade.

    O sr. tem defendido uma comédia do eu. O que é isso?
    DeLillo é um bom exemplo da comédia da cultura. Quando você pensa nos romances dele, não pensa em um personagem importante. Você pensa em um mundo, o mundo dele.

    Ele está interessado em como certas forças se relacionam na sociedade.

    A comédia do eu é mais íntima. Dom Quixote surge do desejo humano, do esforço, a distância entre o que queremos e como o mundo de fato é. É a coisa mais bonita em Cervantes. Mesmo nele, a comédia da vida humana inclui a comédia da cultura, porque não vivemos no vazio. Gosto mais disso do que de DeLillo ou David Foster Wallace.

    A concentração do meio editorial em grandes e poucos conglomerados ameaça a criação literária de alguma forma?

    Sim. Há um complexo industrial do livro, corporações que tentam criar uma espécie de literatura global. Um complexo apoiado pelo sistema de prêmios. Veja o Man Booker Prize, que é pago por uma empresa para se promover. Eles abriram inscrições, há três anos, para autores americanos. Ao fazer isso, ganharam um mercado que não tinham. Não foi uma decisão literária, mas uma escolha de patrocinadores para autopromoção.

    A Coisa Mais Próxima da Vida
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    Há risco de esses grupos quererem criar uma estética global padronizada?
    É um grande risco. Eles ficam dizendo como idealmente um autor deveria escrever, o que os críticos deveriam escrever. Se eu pudesse, abriria uma editora.

    A COISA MAIS PRÓXIMA DA VIDA
    AUTOR James Wood
    TRADUÇÃO Célia Euvaldo
    EDITORA Sesi-SP Editora
    QUANTO R$ 35 (128 págs.)

    Edição impressa

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