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    Inezita, a pinga e seu defeito

    JOSÉ HAMILTON RIBEIRO
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    27/09/2017 02h00

    — Qual a importância da pinga na música caipira?

    — Muito importante. Depois da água, é a pinga.

    — E no seu caso?!

    Foi a última vez que falei com Inezita, pouco antes de sua última internação. Era um trabalho para o "Globo Rural".

    Da sua vida, daria para fazer três livros, um para cada fase: 1) a infância; 2) o tempo de cantora e artista de cinema, mulher bonita —"um peixão", como se dizia na época; 3) a agitadora cultural, dedicada ao resgate do tesouro que é a produção dos caipiras, tanto na música, quanto na arte, na história, nos costumes, na alegria, na tristeza, na vida e na morte.

    Assis Ângelo fez em livro uma leitura poética da menina Inês: a infância está contemplada. Ficam faltando os outros dois.

    Após o disco histórico com a primeira música caipira gravada, em 1929, por Cornélio Pires —"Jorginho do Sertão", de sua autoria, uma peça difícil de cantar, mas espirituosa e agradável— abriu-se campo a um grande —enorme!— espaço no mundo fonográfico brasileiro. Primeiro a música caipira propriamente dita, agora o chamado "sertanejo moderno", diante do qual Inezita se arrepiava.

    Sendo, como foi, uma crônica da vida no Brasil em dada geografia (o Centro-Sul, com avanços para Centro-Oeste e Nordeste, entrando também no Norte) e em determinado tempo —digamos, de 1929 a 1980—, a música caipira é um retrato do homem do campo —com sua família, vizinhança, conflitos, crenças, ecologia, aspirações— como não há outro tão rico para outras regiões do Brasil.

    Ivan Vilela, violeiro e pesquisador da USP, diz que nosso caipira é o camponês brasileiro de vida mais bem documentada, graças às modas de viola. Vale lembrar que, no período, a grande maioria dos brasileiros vivia no campo.

    Na vida pessoal, na escola, no palco, na televisão, onde estivesse, Inezita punha seu charme e lucidez para valorizar esse tesouro cultural criativo, autêntico, variado (22 ritmos, cada um com células rítmicas próprias e distintas), construído ao longo de meio século por violeiros e poetas, alguns beirando a genialidade (Raul Torres, Carreirinho, Tião Carreiro, Inezita).

    Os criadores da música caipira eram o que havia de melhor em seu tempo e lugar. Era gente que conhecia a vida do caipira —muitos a viveram diretamente— para cantá-la e fazer dela expressão da alma humana em toda sua extensão. Não é pouco!

    Inezita era radical: não aceitava o rock, o pop, a mistura, o armamento pesado dos "sertanejos modernos", esses —muitos deles poetas e músicos também de primeira— que estão fazendo o seu caminho nestes dias.

    Herdaram alguma coisa dos caipiras —talvez a formação em duplas—, mas os tempos são outros e os temas agora têm a ver com a —também dura—vida na cidade grande. É outra coisa.

    Cada vez se entende mais —e se absolve— o radicalismo de Inezita com a música caipira. Ela sabia a riqueza que achava inteligente e justo defender.

    — Mas sobre a pinga: No seu caso, teve importância?

    — Enorme! Não a pinga da garrafa (que também é boa!), mas a da música. "Moda da Pinga", essa esplêndida criação anônima dos violeiros do mato, foi meu primeiro disco e teve influência decisiva em minha carreira. Até hoje me pedem para cantá-la.

    Quanto ao defeito de Inezita, foi brincadeira de Dino Franco, o maior nome da segunda geração dos criadores caipiras (essa que está aí agora, beirando os 80 anos, e que talvez não tenha sucessora).

    O defeito dela, disse Dino (que infelizmente também já se foi), era ser só uma.

    JOSÉ HAMILTON RIBEIRO, 79, jornalista ganhador de sete prêmios Esso, é repórter especial do "Globo Rural" (TV Globo) e autor de "O Gosto da Guerra" (Objetiva).

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