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    CRÍTICA

    Submersa em esteticismo, obra aplaina horror da escravidão

    INÁCIO ARAUJO
    CRÍTICO DA FOLHA

    12/10/2017 01h00

    Ricardo Teles/Divulgação
    Celso Timoteo e Pereira e Alexandre de Sena em cena de 'Vazante
    Celso Timoteo e Pereira e Alexandre de Sena em cena de 'Vazante'

    VAZANTE (regular)
    Veja salas e horários de exibição.

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    É possível ver "Vazante" e compará-lo a, digamos, "Guerra do Paraguay", de Luiz Rosemberg Filho. Aqui, o autor usou uma carroça, um bosque e quatro ou cinco atores para reconstituir esse episódio central da história brasileira.

    O filme de Daniela Thomas buscou reconstituição esmerada de 1821, atores estrangeiros, referências iconográficas precisas, locações cuidadosamente escolhidas. E, no entanto...

    "Guerra do Paraguay" pega tudo que é preciso sobre a violência e o militarismo brasileiros (e não só). "Vazante" deixa escapar qualquer possibilidade de retratar com força o tráfico e a sociedade escravocrata, a opressão étnica e patriarcal.

    Tudo fica submerso no esplendor fotográfico. A escravatura, vista pela luz de Inti Briones, parece amena. Por vezes, um deleite: aquela cozinha... eis um lugar feliz, com mucamas gordas e trabalhadeiras, comida farta...

    A fotografia é o ponto forte e fraco. Henry Miller, o grande diretor de fotografia (e não o escritor), disse que, quando ouvia que "a sua fotografia é muito boa", logo pensava: "Alguma coisa fiz de errado", pois elemento que se destaca do conjunto lhe é nocivo.

    Há problemas de narração e roteiros incontornáveis. Não descobrimos que fim tiveram o feitor Isaías, ou os pais da jovem Beatriz, a protagonista, cujo problema econômico e familiar nos é exposto em detalhes e depois abandonado.

    Não raro o roteiro procede por elipses bem onde seria de supor um desenvolvimento da situação. É como se uma peça essencial tivesse sido rifada em proveito não se sabe bem de quê.

    A direção deixa escapar os melhores achados do roteiro. O negreiro e fazendeiro português Antônio não consegue usar sapatos. Intrigante premissa. Por quê? Talvez os pés inchem nos trópicos, o que daria a ideia do desconforto que sentia entre nós. Mas isso é posto de lado: o calor parece só inspirar preguiça a ele.

    Do mesmo modo, é lateral a personagem da avó de Beatriz, cuja insânia representa a monstruosidade do escravismo e da era colonial. Não me parece justa a reclamação de que personagens negros não são desenvolvidos –a rigor, nenhum é. A diretora parece investir numa obra que, pelas imagens, produzisse uma ideia do que foi a escravatura.

    O intento mostra-se fartamente equivocado. É um mundo às avessas: colônia e escravatura pedem uma estética de "vômito", como disse Nelson Rodrigues. Para ele, só se dá conta do Brasil pelo vômito, de um Glauber, de um Euclides.

    Mas Thomas produz a imagem asséptica de quando o extrativismo esgotou-se e a classe dominante não sabe para onde ir. Tudo está fora do lugar, dos pés (e sapatos) à cabeça. No entanto, tudo se dilui na estética de "mesa bem posta".

    "Vazante" lança contradições de nossa formação e produz delas uma versão acomodatícia. Fosse esse ou não o desejo da diretora, os horrores do escravismo aplainam-se. Afogado em esteticismo, termina por ser um filme tão frouxo quanto estéril.

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