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    CRÍTICA

    Excesso de confiança afeta livro de Gonçalo M. Tavares

    PAOLA POMA
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    20/10/2017 01h00

    Pedro Loureiro/Getty Images
    O escritor português Gonçalo M. Tavares
    O escritor português Gonçalo M. Tavares

    O TORCICOLOGOLOGISTA, EXCELÊNCIA (regular)
    AUTOR Gonçalo M. Tavares
    EDITORA Dublinense
    QUANTO R$ 39,90 (256 págs.)

    *

    O mais recente livro do angolano Gonçalo M. Tavares lançado no Brasil, "O Torcicologologista, Excelência", como o próprio título indica, nos apresenta um especialista no pensamento retorcido, nos volteios da linguagem, ou quiçá, no giro das ideias.

    Dividido em duas partes desiguais, a primeira, (e mais extensa) nomeada "Diálogos", coloca em prática o método. E o início parece bastante promissor. Dois interlocutores, nunca nomeados (seriam sempre os mesmos?), discorrem sobre um vasto leque de assuntos: coragem, o bem e o mal, tempo e espaço das cidades, a moda etc.

    O tema de abertura, a revolução, é um chamariz perfeito para leitores insatisfeitos com a realidade atual.

    "1- Só uma última questão: é preciso levar alguma coisa para a revolução?
    2- Cada um leva o que sentir ser necessário, e o que for exigido pelo mais profundo do seu ser.
    1- Como?
    2- Leve uma pedra."

    O aprendizado da violência –pedras para partir vidros ou cabeças–, as inversões das circunstâncias surpreendem o leitor. Mas, logo em seguida, o didatismo dos diálogos reduz de forma considerável as margens da ambiguidade, pois constatar reiteradamente a conversa de dois alienados por si só não rompe o círculo da alienação.

    Se esse procedimento formal, de início, permite deslocar a posição do outro (locutor/leitor) e dar a ver o mundo de um ângulo diverso, corre-se o risco também de levar a um progressivo esvaziamento da linguagem e a uma retórica da redundância.

    Tavares transforma aquilo que poderia ser uma crítica feroz à sociedade contemporânea numa sucessão de esquetes onde o irônico perde terreno para o riso frouxo. Lugares comuns empurram o leitor para as cordas, adiando o nocaute por vários rounds.

    Até mesmo quando o escritor mimetiza o pensamento obtuso tão presente no cenário político mundial, termina baixando a guarda da linguagem e o combate verbal enfraquece diante de soluções alinhadas, complacentes e cediças em torno de palavras que começam com C: caganifrates, caga-lume, cagaita, caga-na-saquinha- caganeta.

    Já a segunda parte do livro "Cidade" prescinde do diálogo. Sequenciados e numerados, os habitantes são retratados segundo uma estética da estatística.

    "O Número 3 está a desenhar os pais e a mandar um sms com o nome do médico", ou "O Número 50 está a ver pornografia no computador e a mandar um sms com a mensagem 'Estou quase a terminar o trabalho'."

    Haveria aqui uma tentativa de denunciar a realidade apequenada dos homens? Repetição disfarçada na (in)diferença? As didascálias representariam a alienação da condição humana no tempo?

    No conjunto, o livro revela uma ambição intelectual maior do que efetivamente realiza. O descompassado paralelo entre "diálogos/cidade, espécie de espelhamento entre o mundo das ideias e a concretude da vida social, só reitera os problemas estruturais da obra: as partes não conversam. Tagarelice e silêncio se cruzam sem controvérsia.

    O Torcicologologista, Excelência
    Gonçalo M. Tavares
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    Transitando por uma linhagem que vai de "Monsieur Teste", de Valéry, a "Histórias do sr. Keuner", de Brecht, Tavares vem desenvolvendo uma obra literária –poesia, romance e ensaio– que deve ser respeitada.

    Mas, talvez, neste último livro, peque por acreditar demais no seu talento e repita estratégias já conhecidas dos seus leitores de "O Bairro".

    O mundo é mais complexo do que supõe o torcicologologista, Excelência!

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