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    Protagonismo e postura política de músicos marcaram festival de 67

    ZUZA HOMEM DE MELLO
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    21/10/2017 03h37

    Na tarde da primeira eliminatória, aconteceu algo que eu nunca tinha visto.

    Naquele sábado, 30 de setembro de 1967, Márcia ensaiou com a orquestra da TV Record, regida por Ciro Pereira, uma linda canção romântica.

    Com brilhante arranjo do José Briamonte, ela jogou emoção ao interpretar a composição de Johnny Alf.

    Assistindo na plateia ou na coxia, técnicos, músicos e cantores não resistiram, bateram palmas quando ela entoou o último verso: "E junto a mim, queira ficar". À noite, diante de uma plateia ruidosa como nunca, "Eu e a Brisa" foi ouvida pela primeira vez em público. Nenhuma reação ao final, indiferença completa.

    A plateia jovem era dominada por universitários que se sentiam no direito de vaiar canções de que não gostassem. Torcidas montadas se manifestavam apoiando ou desprezando concorrentes com aplausos calorosos ou "búúús" ensurdecedores.

    Mas ai das que não tivessem conteúdo político. Vaia nela. Descobriram a veemente forma de protestar sem estilingue contra o regime militar.

    Foi assim até o final da terceira eliminatória para classificar 12 canções, das quais quatro se destacavam. Uma delas, "Alegria, Alegria", de Caetano, tinha uma novidade: guitarras elétricas no grupo de rock do acompanhamento. "Domingo no Parque", do Gilberto Gil, também: guitarras de rock contrapondo-se a um berimbau.

    Outra novidade, ambos propunham misturar erudito e iê-iê-iê com música popular brasileira. Um negócio de quem sabia o que queria, invadindo com guitarras o templo sagrado da sigla em voga, a MPB.

    Sabiam, mas não imaginavam o rumo que iria tomar. Rotularam aquilo de "som universal". Cada um entendesse como quisesse.

    O grande diferencial desse festival, mais até que o novo estilo que depois receberia seu nome definitivo de tropicalismo, foi a tomada de posição pelos compositores.

    Se no 2º festival da Record (1966) as canções eram defendidas por cantores que, assim, ganhavam fama, em 1967 os compositores tomaram uma posição determinante.

    Naquele ano, os compositores entraram em cena, literalmente: cantando suas canções no palco, aparecendo na TV e ganhando o espaço que nunca existira antes para criadores de canções. Quem acabava levando os louros como donos das concorrentes eram os intérpretes, os cantores.

    Nesse Festival de 1967, os compositores tomaram o lugar dos cantores. Gravaram eles mesmos suas músicas, tornaram-se ídolos.

    Enquanto a atividade de cantor foi perdendo força, os autores foram se esmerando na arte de cantar aquilo que conheciam melhor que ninguém: sua própria obra.

    Mudaram o rumo da história. Edu, Gil, Caetano e Chico tomaram a dianteira. Foram os quatro primeiros. Qualquer uma poderia vencer —a plateia iria aplaudir. Sem vaia. O povo mostrou que gostou e gosta até hoje. É a nobreza da canção brasileira.

    Em tempo: eliminada, "Eu e a Brisa" virou a música de mais sucesso de Johnny Alf.

    ZUZA HOMEM DE MELLO é autor de 'A Era dos Festivais: Uma Parábola' e foi técnico de som no festival de 1967

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