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    CRÍTICA

    Em 'O Formidável', Hazanavicius vampiriza Godard descaradamente

    INÁCIO ARAUJO
    CRÍTICO DA FOLHA

    26/10/2017 01h00

    O FORMIDÁVEL (regular)
    DIREÇÃO Michel Hazanavicius
    ELENCO Louis Garrel, Stacy Martin
    PRODUÇÃO França
    QUANDO estreia nesta quinta (26)
    Veja salas e horários de exibição.

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    "O Formidável" se faz de três movimentos distintos, embora não raro superpostos. O primeiro deles até justifica o título brasileiro do filme (sem relação com o original, que o chama de "temível"). Existe ali um jovem Jean-Luc Godard, no auge de seu poder midiático, terminando as filmagens de "A Chinesa", último filme de sua primeira fase (1967), amando e sendo amado por Anne Wiazemsky, jovem atriz do filme, mas um pouco mais: ela era a neta de François Mauriac, Nobel de Literatura e uma espécie de instituição nacional francesa.

    Esse movimento ocupa-se da vida do casal, retratada em um tipo de imagem leve, fluente, elegante. Mas, espera um pouco: essa imagem vem de Godard –cita Godard todo o tempo. Aqui, o filme de Michel Hazanavicius parece até uma aberta homenagem ao talento e aos filmes de Godard. Não é bem isso, logo veremos. Hazanavicius serve-se das imagens de Godard como serviu-se do cinema mudo em "O Artista": um procedimento para seduzir o espectador.

    O segundo movimento começa a mostrar a complexidade do filme. Estamos próximos do Maio de 68. Godard não se afirmara maoísta ao filmar "A Chinesa"? Pois então veremos como se sai. O cineasta adere ao movimento. Ele se transforma: parece agora um desses muitos intelectuais que, engolfados pela nova onda e uma nouvelle vague que já não controlam, buscam não perder o bonde do esquerdismo triunfante.

    Sai de cena o diretor que controla a mídia e a jovem Anne, dando lugar a um intelectual inseguro, em parte pelo fracasso de "A Chinesa". O cineasta vacila. Busca integrar-se ao movimento, mas é inútil. A onda o arrasta.

    Godard pode ter posto tudo em questão, mudado o cinema e tudo mais –sustenta "O Formidável". Mas só enquanto detinha o controle de tudo. Agora, o que fazer? Como colaborar para a revolução proletária? Como escapar ao sistema? Aqui, o filme poderia se chamar até "O Tormentoso".

    Mas seria um equívoco. O objetivo final de Hazanavicius nesse movimento é desqualificar o Maio de 68. Talvez hoje não seja tão difícil. Maio de 68 pareceu ser o início de uma grande transformação, talvez a chegada do comunismo a um país ocidental desenvolvido. Hoje parece que foi o canto de cisne do esquerdismo fundado sobre a Revolução de 1917.

    Mas está longe de ser a insignificância que Hazanavicius sugere. Em 1968 havia o Vietnã, a Palestina, as ditaduras latino-americanas... E, sobretudo, Maio de 68 deixou legados importantes, como uma ampliação da noção de liberdade, sexual inclusive. Não esquecer que boa parte do movimento foi conduzido pela recusa da autoridade. Não se mata "papai De Gaulle" à toa.

    Para "O Formidável", no entanto, é vital ver Maio de 68 como evento secundário, na medida em que ajuda a diminuir Godard, pois o terceiro movimento do filme consiste na tentativa de destruí-lo. Como pessoa? Mais que isso: como formulador de um cinema livre, fora dos comandos de Hollywood e Mosfilm. A crise de consciência leva o cineasta a criar o Grupo Dziga Vertov e filmar para os operários. Agora acabou o mestre, entra em cena o militante: o cinema proletário é um produto de equipe.

    Como se sabe, o impasse levou Godard a uma terra de ninguém. Ele demoraria a sair dessa crise, mas sairia, faria de seu cinema um gesto ensaístico, solitário e independente. Legaria ao cinema essa ideia: a de independência em relação ao cinema comercial tradicional.

    Essa parte Hazanavicius omite. Seu filme detém-se na grande crise godardiana, avançando ao terceiro movimento do filme, que bem poderia se chamar "O Patético". É quando, entre outras, torna-se para Wiazemsky um tirano insuportável, ciumento, um homem francamente do passado.

    É nesse terceiro movimento que "O Formidável" se apoia para buscar a cumplicidade do público. Como a dizer que nada pode ser mais errado, mais tolo, do que essa inquietude e as contradições do cara genial. E nada, por conseguinte, pode ser mais justificável que o cinema de Hazanavicius: pura distração. "O Formidável" é, a rigor, uma espécie de defesa e ilustração do conformismo.

    Sim, "O Formidável" é competente dentro do mínimo a que aspira. Mas só pôde chegar aí vampirizando Godard descaradamente.

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    Assista ao trailer de "O Formidável"

    Assista ao trailer de "O Formidável"

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