• Ilustrada

    Monday, 29-Apr-2024 12:07:32 -03

    Otto Lara Resende se deixa entrever em livro de perfis 'O Príncipe e o Sabiá'

    MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
    DE SÃO PAULO

    04/11/2017 02h00

    Luciana Whitaker - 21.abr.92/Folhapress
    O escritor mineiro Otto Lara Resende (1922-1992), que tem livro de perfis relançado
    O escritor mineiro Otto Lara Resende (1922-1992), que tem livro de perfis relançado

    Em 1922, quando a família Bloch chegou ao Brasil, Otto Lara Resende estava "obscuramente ocupado em nascer" em São João del Rei.

    Ali seu pai, que deu aulas a João Guimarães Rosa, era dono de um colégio —onde certa vez recebeu para concorrida conferência Alceu Amoroso Lima, que era também o crítico Tristão de Athayde.

    Rosa guardava daquele tempo permanente lembrança, nos diz Otto. E gostava de elogios: "Cuidava com carinho os artigos laudatórios. Os que lhe eram contrários, ou lhe faziam restrições, guardava de cabeça para baixo. Era o castigo que impunha aos que não apreciavam sua obra..."

    Já Tristão de Athayde encarnava para o jovem mineiro a própria glória literária. E ela certa vez entrou na casa de sua família e, diante de seus olhos perplexos, desceu das alturas "para, como qualquer mortal, tomar café com biscoito de polvilho e pão de queijo".

    Ler os perfis reunidos em "O Príncipe e o Sabiá", que ora reaparece em bem-vinda segunda edição, é percorrer um mundo no qual personagens da política, das letras, do jornalismo e da crônica cotidiana nos são desenhados com pinceladas de destreza literária e afeto, numa escrita que não se atém à exterioridade do vulto, mas está sempre a revelar ou a presumir sua dimensão humana.

    O livro, lançado em 1994, dois anos após a morte do grande jornalista e escritor, compila 60 perfis de uma constelação variada, que reúne —além de Adolpho Bloch, Alceu Amoroso Lima e Guimarães Rosa— nomes como Mário de Andrade, Jânio Quadros, Clarice Lispector, Nelson Rodrigues, Françoise Sagan, Salazar, Luís Carlos Prestes e Rubem Braga.

    BIOGRAFIA DISFARÇADA

    Otto, que não se conciliava com a ideia de escrever uma autobiografia, mencionou certa vez ao editor Luiz Schwarcz o projeto, já "praticamente pronto", de uma reunião de textos escritos ao longo da vida sobre um leque —então mais restrito— de personagens.

    A ideia era oferecer uma galeria de retratos jornalísticos e literários que também permitisse ao leitor entrever o perfil do autor. Era o próprio Otto que se revelaria na tarefa de revelar o outro. Posteriormente, a família propôs novos nomes, e a escritora Ana Miranda encarregou-se da pesquisa que resultou no livro.

    Os textos nos remetem a um tipo de relato que extrai sua força e sua graça de uma circunstância histórica em que as fronteiras entre o escritor e o jornalista ainda eram borradas pelo caráter relativamente amador dos dois ofícios.

    Otto, como se sabe, faz parte de uma geração de intelectuais e escritores talentosos de Minas —como Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Hélio Pelegrino— que se radicou naquele Rio de Janeiro inteligente, criativo e urbano dos tempos de capital da República.

    Começou sua atividade ao fim da Segunda Guerra, quando os jornais ainda se preparavam para assumir "o status e os cacoetes de grandes empresas", como nota Wilson Figueiredo no posfácio à edição.

    Dos primeiros escritos publicados em Minas, onde seu pai era diretor de jornal, à coluna que veio a ocupar na Folha no início dos anos 1990, ele participou por dentro e ativamente desse processo de transformação da imprensa.

    Foi cronista, colaborador e também diretor de publicações importantes, como a lendária revista "Manchete" e o "Jornal do Brasil" —e conheceu o mundo da TV ao trabalhar na Globo.

    O Príncipe e o Sabiá - E Outros Perfis
    Otto Lara Resende
    l
    Comprar

    Os perfis de "O Príncipe e o Sabiá" (o título vem do texto dedicado a Rubem Braga) alcançam o objetivo de nos apresentar com encanto e argúcia a alguns dos protagonistas do século 20 brasileiro —e cumprem a promessa de iluminar indiretamente o sujeito que os escreve.

    Mas a edição traz ainda um texto de Otto sobre si próprio, que ajuda a completar o retrato deste personagem que se distinguiu em seu humanismo católico, em sua mineirice humorada, em seu talento literário e em sua inclinação para a conversa e o relacionamento.

    *

    O PRÍNCIPE E O SABIÁ - E OUTROS PERFIS
    AUTOR Otto Lara Resende
    EDITORA Companhia das Letras
    Quanto R$ 59,90 (392 págs.); R$ 39,90 (e-book)
    AVALIAÇÃO muito bom

    *

    ADOLPHO BLOCH: COMEÇOS DE UM DELÍRIO
    Leia trechos selecionados do perfil escrito por Otto Lara Resende

    Não conheci nem presenciei os primeiros passos dos Bloch no Brasil. Quando eles chegaram ao Rio, no ano denso de 1922, procedentes do outro lado do mundo, eu estava obscuramente ocupado em nascer no Matola, São João del Rei. Só muitos anos depois vim a ter vaga notícia da sua existência. [...]

    Num trabalho arqueológico que tem sua graça, mas tem também suas dores, desço a remotas galerias subterrâneas. Cheguei a tempo de ser testemunha desses começos de uma fortuna. Recorro ao título do conto de Clarice Lispector, mas explico que a palavra fortuna tem aqui o sentido de sorte, de fado; de destino, tal como está em Camões.

    O menino Artur, personagem do conto clariciano, pensava no que fazer se tivesse dinheiro. Ao contrário de João Guimarães Rosa, estava convencido de que o dinheiro serve para comprar coisas. Com as sobrancelhas franzidas, o menino Artur levanta esta alta e metafísica indagação: "Papai, como são promissórias?".

    Quando encontrei Adolpho Bloch, ele já sabia perfeitamente o que era uma promissória. A resposta que Artur desejava, ao Adolpho a vida já lhe tinha dado. Não precisava incomodar o seu velho pai Joseph Bloch, vivo naquela altura.

    [...] Adolescente quando chegou ao Brasil, Adolpho não vinha propriamente do paraíso. Tinha muito o que esquecer. Mas o tempo passa para melhor preservar. Adolpho precisava reinventar o mundo. Tratou de reinventá-lo segundo um critério edênico, na linha do que é, por exemplo, o mundo da publicidade.

    Gráfico, atavicamente impressor, Adolpho hasteou, para efeito externo, sua alma de folhinha. Na vitrine cabem apenas as bonitas estampas coloridas, as parnasianas paisagens de cromo. É neste cacoete, entre outros, que terão esbarrado alguns jornalistas que com ele vieram a trabalhar, depois que se tornou também editor. A vida como ela é nem sempre é a vida como é o Adolpho; como ele a quer; como ele a vê; ou como ele a quer ver.

    [...]Adolpho não parava de falar. Praguejava, lamentava-se, ria; e se precipitava sobre um mesmo refrão, não é verdade isto? Ficamos logo cientes de que ele vinha de Kiev. Toda a família e, como riqueza, um almofariz.

    Acabava de chegar da fria Rússia para o calor da Aldeia Campista, via Itália.

    Acabava de chegar, isto é, há mais de vinte anos pertencia à paisagem brasileira e ao verão carioca, personagem do Estácio e de um capítulo da diáspora russa. As mesas de mármore, seus pés de ferro, estavam na Ucrânia; lá fora não passava um horrendo ônibus amarelo: passava o Dnieper, suas doces águas da perdida infância obsessiva. [...]

    Aos setenta anos, sólido, curtido, assinalado pelo sucesso e pelas cicatrizes, dividido e contraditório, o menino de Kiev moeu no seu pilão solitário dúvidas e dívidas, certezas e iras, ternuras e frustrações. Justo ou injusto, justo e injusto, é um homem; é uma vida. Como o menino Artur, Adolpho Bloch sabe como são promissórias; sabe o que são promessas e o que são realizações.

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024