• Ilustrada

    Friday, 03-May-2024 21:36:08 -03

    Na era dos 'haters', peças debatem falta de diálogo e conservadorismo

    MARIA LUÍSA BARSANELLI
    DE SÃO PAULO

    06/11/2017 02h00

    Nana Moraes/Divulgação
    (FILES) This file photograph taken on January 11, 2016, shows Italian director Giuseppe Tornatore as he poses during the photocall for his film "La corrispondenza" in Rome. Italian director Giuseppe Tornatore on November 4, 2017, has denied assaulting a showgirl as the Academy Award-winning filmmaker became the latest in the entertainment world to be accused of sexual harassment. Tornatore, best known for his 1988 "Cinema Paradiso", which took home the Oscar for best foreign language film, was accused by former TV starlet Miriana Trevisan of fondling and kissing her in his office 20 years ago / AFP PHOTO / ALBERTO PIZZOLI
    Grace Passô (à frente) na peça "Preto", da Companhia Brasileira de Teatro

    Numa era de "fake news", polarização política, discursos prontos e "haters" de internet, espetáculos buscam entender a sociedade brasileira hoje, seja refletindo sobre problemas sociais, seja buscando na nossa história as origens da desigualdade e do conservadorismo do país.

    Eles resvalam no que se chama de "urgência" na arte –abordar discussões contemporâneas da sociedade– e no debate sobre a alteridade (tentar compreender e se colocar no lugar do outro).

    A seguir, alguns trabalhos que tratam do tema.

    *

    Preto

    É uma recorrência de perguntas. Passam por questionamentos da nossa imagem na sociedade ("como é ser você?"), investigações sobre o discurso ("o que eu digo é realmente o que eu digo ou um discurso já construído?") ou um simples "tudo bem?".

    Em "Preto", espetáculo que estreia nesta quinta (9), a Companhia Brasileira de Teatro se propõe a fazer um diálogo –com o público– e também a discutir sobre ele, sobre a nossa coexistência numa sociedade com diferentes ideologias e fissuras do nosso passado escravocrata.

    Trata-se de um desdobramento da pesquisa feita pelo grupo para "Projeto Brasil" (2015), fruto de viagens pelo país e que trazia reflexões sobre a igualdade e o afeto.

    "Preto" partiu de leituras sobre o racismo, como a obra do abolicionista Joaquim Nabuco, "A Crítica da Razão Negra", do sul-africano Achille Mbembe, e os escritos da poeta Leda Maria Martins.

    O processo de um ano incluiu residências em cidades brasileiras e alemãs. A ideia era entender qual imagem essas comunidades distintas tinham de si e dos outros –o que também levou o grupo a encenar o trabalho numa unidade descentralizada do Sesc, no Campo Limpo, bairro na zona sul de São Paulo.

    "Como a gente se vê, como o outro nos vê, como a gente vê o outro e essas tentativas de diálogo, isso foi muito estruturante para o espetáculo", afirma o diretor Marcio Abreu, que assina a dramaturgia com Grace Passô e Nadja Naira (ambas em cena).

    A discussão sobre imagem e a diversidade do próprio elenco, com negros e brancos, também surge na peça.

    O resultado são cenas que, como é de praxe nos trabalhos do grupo, se aproximam da performance. Algumas sugerem imagens (como uma negra que rejeita estereótipos sobre a negra brasileira), trazem danças ou frases soltas. E, em geral, muitas perguntas –uma forma, diz Grace, de ressaltar o diálogo com a plateia.

    Aos poucos, o público toma a palavra. Em determinado momento, a atriz Cássia Damasceno vira um "canal" de fala: ela escuta, em fones, o que é dito pelos espectadores em microfones, e repete com sua voz o discurso.

    "[Na montagem], respondemos a questões que estão sendo tocadas agora", diz a atriz Renata Sorrah, que faz aqui a sua terceira parceria com a Companhia Brasileira (as anteriores foram "Esta Criança" e "Krum"). "A gente precisa dialogar hoje."

    *

    Bicho

    Nada é exatamente o que parece no espetáculo "Bicho", texto de André Sant'Anna dirigido por Georgette Fadel, que estreou no sábado (4).

    Para uma pesquisa sobre prostituição masculina, um ator (Jean Martins) decide abordar um michê (Eduardo Speroni) e uma travesti (Rael Barja e Verónica Valenttino) com uma série de perguntas, de sexualidade a política.

    As conversas, que transitam entre o violento e o filosófico, aos poucos revelam outras faces dos personagens e questionam valores. Há conservadorismo em quem consideramos liberal? Prostituir-se também pode ser uma arte?

    Lenise Pinheiro/Folhapress
    (FILES) This file photograph taken on January 11, 2016, shows Italian director Giuseppe Tornatore as he poses during the photocall for his film "La corrispondenza" in Rome. Italian director Giuseppe Tornatore on November 4, 2017, has denied assaulting a showgirl as the Academy Award-winning filmmaker became the latest in the entertainment world to be accused of sexual harassment. Tornatore, best known for his 1988 "Cinema Paradiso", which took home the Oscar for best foreign language film, was accused by former TV starlet Miriana Trevisan of fondling and kissing her in his office 20 years ago / AFP PHOTO / ALBERTO PIZZOLI
    Da esq. para a dir.: Jean Martins, Rael Barja, Verónica Valenttino e Eduardo Speroni em "Bicho"

    "A dramaturgia traz uma monstruosidade, uma exacerbação das paixões, distorções e opiniões, do senso comum", afirma Fadel. "É violenta, mas no fim tem uma poesia, como a imagem da pedra onde nasce o capim, que rompe tudo para continuar vivendo nesse planeta."

    Segundo a diretora, é também uma discussão sobre a liberdade de expressão. "[A peça] enfoca todos os nervos dessa vida contemporânea, desses e rótulos que as pessoas colocam hoje nos outros".

    Os assuntos levantados pela peça também serão temas de debates realizados após as sessões das segundas-feiras. No dia 27/11, por exemplo, haverá participação de Natalia Mallo, diretora de "O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu", peça que sofreu duas censuras judiciais neste ano.

    "A gente quer um debate mais amplo, para não ficarmos repetindo frases feitas", comenta Georgette Fadel.

    *

    Selvageria

    Documentos sobre o Brasil, escritos por europeus e datados dos séculos 16 ao 19, guardariam muitas explicações sobre nosso país hoje. Ali, diz o diretor Felipe Hirsch, estariam as origens do nosso conservadorismo.

    Em seu "Selvageria", que estreou na última sexta (3), o encenador buscou textos da coleções do bibliógrafo José Mindlin e da "Bibliografia Brasileira do Período Colonial", de Rubens Borba de Moraes, todos tratando de escravidão.

    Luís Egídio/Divulgação
    (FILES) This file photograph taken on January 11, 2016, shows Italian director Giuseppe Tornatore as he poses during the photocall for his film "La corrispondenza" in Rome. Italian director Giuseppe Tornatore on November 4, 2017, has denied assaulting a showgirl as the Academy Award-winning filmmaker became the latest in the entertainment world to be accused of sexual harassment. Tornatore, best known for his 1988 "Cinema Paradiso", which took home the Oscar for best foreign language film, was accused by former TV starlet Miriana Trevisan of fondling and kissing her in his office 20 years ago / AFP PHOTO / ALBERTO PIZZOLI
    Caco Ciocler em meio aos sacos de lixo da peça "Selvageria", dirigida por Felipe Hirsch

    "Escravidão talvez seja a palavra que infelizmente traduza a história desse país", afirma Hirsch, que também se inspirou nas recentes ocupações dos estudantes secundaristas. "É muito significativo que eles tenham feito isso nesse momento [de conturbação política e social]."

    Sobre um palco coberto de 1.500 sacos de lixo preto, o elenco interpreta com ironia narrativas que descrevem como índios teriam ficado gratos pelo batismo católico ou sobre o decreto da Lei Saraiva, em 1881, que proibia o voto de analfabetos e de pessoas de baixa renda.

    "É uma ironia ter documentos assim, porque são visões europeias sobre os 'selvagens' da terra, são muito cruéis", diz o diretor. "Mas ali estão as raízes de tudo o que está nas ruas hoje, a desigualdade, a incompreensão."

    -

    PRETO
    QUANDO qui. a sáb., às 20h; dom., às 18h; de 9/11 até 17/12
    ONDE Sesc Campo Limpo, r. Nossa Sra. do Bom Conselho, 120, tel. (11) 5510-2700
    QUANTO R$ 9 a R$ 30
    CLASSIFICAÇÃO 14 anos

    -

    BICHO
    QUANDO seg., sex. e sáb., às 20h; dom., às 19h; até 27/11
    ONDE Companhia do Feijão, r. Teodoro Baima, 68, s/ telefone
    QUANTO R$ 30
    CLASSIFICAÇÃO 18 anos

    -

    SELVAGERIA
    QUANDO qui. a sáb., às 20h; dom. e feriados, às 18h; até 17/12
    ONDE Sesc Vila Mariana - teatro, r. Pelotas, 141, tel. (11) 5080-3000
    QUANTO R$ 12 a R$ 40
    CLASSIFICAÇÃO 16 anos

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024