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    Nos EUA, Grostein Andrade usa parte de sua história na filmagem de 'Abe'

    SILAS MARTÍ
    DE NOVA YORK

    09/11/2017 02h00 - Atualizado às 22h30
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    "Ele é muito fofo." Fernando Grostein Andrade não desgruda os olhos dos monitores no set. Do outro lado da câmera, um garotinho de pijama estuda livros de receita. Desenha, escreve e anda de um lado para o outro em silêncio, arrancando um sorriso do diretor no final do take.

    Na última cena rodada naquele dia, estava claro que o homem no comando de "Abe" se enxerga no personagem no centro da trama de seu primeiro longa de ficção.

    "Nesse filme, eu peguei uma parte da minha vida, da minha história", diz o diretor. "Sou filho do segundo casamento do meu pai e do segundo casamento da minha mãe. Meu pai era católico e minha mãe é judia. Fiz o bar mitzvah, mas comemorava o Natal com todo mundo junto."

    Tudo isso filtrado pela "harmonia caótica" das ruas do Brooklyn, em Nova York, sustenta o enredo do filme em que Grostein Andrade, 36, volta à infância no corpo de Noah Schnapp, o garotinho que ficou famoso pelo papel de Will Byers em "Stranger Things", sucesso da Netflix.

    Mas, no lugar da fantasia desmedida da série, o conflito –mais prosaico– em "Abe" assombra a mesa de jantar.

    O personagem de Schnapp, que dá nome à obra, tem pai muçulmano e mãe judia –a mãe de verdade de Grostein Andrade até esteve no set– e sonha em neutralizar a guerra cultural que sempre azeda os encontros da família apelando para o paladar.

    Ele aprende a cozinhar com um chef vivido por Seu Jorge, que conhece numa barraquinha de comida do bairro, e passa então a inventar receitas bem ao estilo do Brooklyn, como tacos kosher e cortes de carne halal, respeitando as restrições da dieta de judeus e muçulmanos com um toque meio hipster.

    Noutra cena do filme, que deve estrear só em meados do ano que vem, o cardápio de pretensões cosmopolitas que Abe inventou para a sua festa de aniversário acaba se tornando indigesto demais e minando seus esforços de paz.

    Na hora dos parabéns, metade da mesa canta em árabe e a outra em hebraico, uma tentando atropelar a outra.

    FILMAGENS

    Não parecia, aliás, muito diferente do set. Nos bastidores desse filme brasileiro falado em inglês e rodado em Nova York com um diretor de fotografia italiano e uma equipe de americanos e latinos, as línguas também se misturavam o tempo todo.

    "Abe" está orçado em cerca de R$ 7 milhões, entre patrocínios privados e verbas públicas, e está sendo pensado como vitrine do cinema autoral do Brasil no exterior.

    Blasco Giurato, que esteve por trás dos enquadramentos de "Cinema Paradiso", filme de Giuseppe Tornatore lançado em 1988 com outro garotinho no papel principal, encerrava cada take gritando um "bravo" ou "bellissimo".

    "É um filme realista, de situações que acontecem todos os dias", dizia o italiano, num café do Brooklyn. "Ele fala de maneira sofisticada de uma verdadeira guerra lá dentro da cabeça do personagem."

    No momento em que a equipe estudava os conflitos do enredo, uma guerra de verdade se desenrolava na vida real na cidade lá fora.

    O atentado terrorista que deixou oito mortos em Manhattan, do outro lado da ponte, abalou Nova York nos primeiros dias de gravação.

    Menos de uma semana depois, um atirador matou 26 pessoas que rezavam numa igreja do Texas enquanto os atores ensaiavam as falas para entrar em cena, a sombra sinistra da realidade pesando sobre a "atmosfera lúdica" da ficção que eles se esforçavam para construir.

    "É quase arriscado o que a gente está fazendo aqui", diz o cineasta. "Nosso objetivo é fazer um filme divertido, leve e gostoso, mas a política é uma camada, como uma cebola. A gente se enfiou no buraco que a gente está hoje porque querem que a política seja só um pedacinho das nossas vidas."

    Esse território político isolado, no caso, surge sob roupagem colorida em "Abe". Grostein Andrade escolheu gravar cenas num mercado de frutas cheio de imigrantes, onde quis criar um cenário que lembrasse as vendas caóticas de Jerusalém, e também vai rodar uma sequência numa sinagoga do bairro.

    Mesmo que a violência que pode aflorar por causa de diferenças religiosas e políticas seja pano de fundo distante no filme que faz agora, o diretor ficou conhecido por falar de temas espinhosos como a guerra às drogas no documentário "Quebrando o Tabu", lançado há seis anos.

    O momento também não podia ser mais político. Grostein Andrade vem se tornando militante da defesa dos direitos dos homossexuais, assunto recorrente de um blog que mantém neste jornal, e seu irmão, Luciano Huck, apresentador da TV Globo, quer se candidatar ao Planalto, ideia que o desagrada.

    Mas seu olhar está longe do Brasil. O cineasta conta que uma imagem que orienta o novo longa em Nova York é uma das lembranças que tem do pai, com quem brincou uma vez no Central Park.

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