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    Crítica

    Alegoria sobre viciados em livros é envolvente, mas exige do público

    MARIANA DELFINI
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    10/11/2017 02h00

    Lenise Pinheiro/Folhapress
    Cena do espetáculo 'Dostoiévski-trip', em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil
    Cena do espetáculo 'Dostoiévski-trip', em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil

    DOSTOIÉVSKI-TRIP (bom)
    QUANDO sex., sáb. e seg. às 20h; dom. às 19h, até 18/12
    ONDE Centro Cultural Banco do Brasil, r. Álvares Penteado, 112, tel. (11) 3113-3651
    QUANTO R$ 10 a R$ 20
    CLASSIFICAÇÃO 16 anos

    *

    Para quem gosta de literatura, a proposta de "Dostoiévski-trip" prenuncia um deleite: viciados em livros encontram-se para alimentar a fissura com uma nova droga.

    A sinopse deve ser lida literalmente: na peça de Vladímir Sorókin, são pílulas que transportam os usuários a autores clássicos como Thomas Mann ("Como meu fígado doeu depois dele") e Tolstói ("Nem Simone de Beauvoir me deixou tão na merda como Tolstói").

    O leitor sorri em cumplicidade enquanto os personagens desfiam experiências à espera de uma nova droga. O vendedor chega com "O Idiota" em sua mala; é a intertextualidade com Dostoiévski a essência da peça de Sorókin.

    Saciados, os personagens incorporam aqueles do romance e encenam o momento em que Nastácia Filípovna, em uma espécie de leilão de si mesma, confronta Gania Ivólguin, jogando ao fogo enorme quantia de dinheiro, enquanto o príncipe Mýchkin, herói do romance, reafirma o desejo de se casar com ela.

    Sem contextualização ou apresentação de personagens, a cena envolve pelo embate emocional e, para os assíduos dos palcos paulistanos, pelo eco que faz da montagem de 2010 de "O Idiota - Uma Novela Teatral".

    Cibele Forjaz dirigia lá parte do elenco afinado que conduz muito bem também aqui —Luah Guimarãez e Aury Porto revivem o príncipe e Nastácia. Belas e pontuais projeções de cenas antigas somam nova camada a essa relação entre os textos, ilustrando a convivência íntima dos artistas com o clássico.

    Quanto dessa familiaridade, no entanto, é partilhada pelo público, mesmo aquele que de fato lê? Pois não se trata só de referências a personagens ou enredo, informações que a plateia absorve na montagem —o que de fato ocorre na primeira metade, em viagens cada vez mais eufóricas dos personagens.

    A segunda metade da peça exige um conhecimento crítico de Dostoiévski que ultrapassa o contato do leitor diletante com o russo.

    A cena em si não é o problema: os personagens passam a narrar histórias terríveis de infância, com violências e abusos, enquanto constroem para si ambientes que, ao final, resultam em uma instalação no palco.

    O momento é pungente pelos depoimentos de sem-teto incorporados à montagem e, mais ainda, pelos personagens em potencial desse drama espalhados no centro vazio da cidade, à saída do teatro.

    Mas a relação desse trecho com a primeira metade fica manca. A tradutora do texto, a professora Arlete Cavaliere, fornece comentários essenciais, no programa da peça, para uma leitura do espetáculo.

    Por exemplo, sobre elementos da filosofia do autor russo: "a compreensão ou o encontro com a verdade se opera por meio da 'queda', do sofrimento e da exposição do lado mais sombrio da natureza humana". Ainda assim, tal complexidade demanda tempo para ser absorvida.

    O jogo da intertextualidade sai prejudicado, e por ser essencial para pensar a contemporaneidade, como propõe Sokórin, a compreensão do espetáculo fica em suspenso.

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