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    Crítica

    Le Carré faz revisão sofisticada de 'O Espião que Saiu do Frio'

    CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    11/11/2017 02h00

    Daniel Bockwoldt-15.out.2017/dpa via AP
    John Le Carré faz conferência na cidade alemã Hamburgo para promover seu novo livro
    John Le Carré faz conferência na cidade alemã Hamburgo para promover seu novo livro

    UM LEGADO DE ESPIÕES (ótimo)
    AUTOR John Le Carré
    TRADUÇÃO Roberto Mugiatti
    EDITORA Record
    QUANTO R$ 39,90 (252 págs.)

    *

    David Cornwell, que na vida literária usa o pseudônimo John Le Carré, é considerado por muitos críticos o escritor que elevou o romance de espionagem à condição de um gênero de ficção próprio e em elevado patamar de qualidade.

    Aos 86 anos, com "Um Legado de Espiões", Le Carré demonstra que continua em excelente forma artística. O enredo retoma o fio condutor de uma de suas obras-primas e maiores sucessos, "O Espião que Saiu do Frio", de 1963.

    Naquele livro, contava-se a história da fatídica Operação Windfall, engendrada pela inteligência britânica na então Alemanha Oriental, que resultou na morte do agente Alec Leamas no momento em que cruzava com sua mulher o muro que separava Berlim, ainda em fase de construção quando a história se desenrola.

    No seu novo trabalho, Le Carré revela que Leaman tinha filhos, que resolvem querer conhecer os bastidores da ação que resultou na morte do pai, e ameaçam processar o governo do reino Unido para exigir reparações financeiras.

    Para tentar resolver a situação, as autoridades recrutam Peter Guillam, um dirigente aposentado do serviço, que revisita a Operação Windfall, e consegue até localizar o lendário George Smiley, principal personagem das obras clássicas de Le Carré, que quase aos cem anos estava recluso, mas é acionado pelo seu leal lugar-tenente Guillam para desvendar o passado.

    Cornwell foi ele mesmo um agente do serviço secreto britânico nas décadas de 1950 e 1960 e evidentemente extraiu o máximo da experiência real para enriquecer sua ficção.

    Diferentemente de outros autores do gênero, como Ian Fleiming (criador de James Bond, o 007), Le Carré vai muito além da descrição das aventuras de ação dos personagens e de intricadas teias de relações parcialmente reveladas para criar mistério e dúvidas no leitor até que a trama toda se resolva.

    Os espiões de Le Carré se questionam moral e existencialmente, colocam em xeque o valor do seu trabalho e das consequências de seus atos para as pessoas que amam e até para a sociedade que defendem.

    É a descrição sofisticada dessas dúvidas, que em nada prejudica a intensidade dramática da história contada, que eleva o padrão de excelência do trabalho do autor.

    Os agentes secretos se comportam perversamente. A justificativa oficial para sua crueldade é que os inimigos são tanto ou mais malvados que eles e que o sistema de governo deles é pior do que a democracia que o Ocidente defende. Mas para Le Carré, essa explicação simplista quase nunca aquieta a consciência sofrida dos personagens.

    Em "Legado de Espiões", essa característica é ainda mais marcante porque a história exige uma avaliação a posteriori de Guillam e Smiley, que já não estão mais na ativa há décadas e, longe do calor das batalhas, tiveram muito tempo para confrontar-se com o que fizeram e com o que fizeram seus subordinados fazer.

    "Legado" também atualiza o ethos contemporâneo do Ocidente. A morte de Leamas e de sua mulher na Operação Windfall, no auge da Guerra Fria, era encarada como uma tragédia que se encerrava em si mesma, com o reconhecimento do heroísmo do sacrifício das vítimas.

    Para as gerações atuais, ela motiva a possibilidade de uma ação judicial contra o Estado que a provocou por parte de filhos, não veem nenhum sentido na perda.

    Um Legado de Espiões
    John Le Carré
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    Tonara que "Legado" inspire também um filme tão bom quanto "O Espião que Saiu do Frio", que em 1965 Martin Ritt dirigiu e Richard Burton brilhantemente interpretou, no papel de Leamas, em atuação que lhe valeu uma indicação ao Oscar.

    Le Carré costuma colaborar no roteiro dos filmes que se baseiam em seus romances, o que seguramente ajuda a torná-los melhores.

    CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA é professor do Instituto de Relações Internacionais da USP

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