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    análise

    Louvre de Abu Dhabi é delírio do soft power bancado por petrodólar

    SILAS MARTÍ
    DE NOVA YORK

    11/11/2017 02h00

    O Louvre de Abu Dhabi lembra uma vila de casinhas brancas lambidas pelas ondas do mar azul-turquesa debaixo de uma imensa cúpula metálica cheia de estrelas.

    Uma década depois dos primeiros rabiscos do arquiteto Jean Nouvel, a filial do maior museu do planeta na capital dos Emirados Árabes Unidos acaba de abrir as portas, desmanchando suspeitas de que seu destino era ser para sempre uma miragem.

    Numa ilha deserta, onde outros arquitetos badalados ainda constroem uma obra mais faraônica do que a outra no último suspiro da era dos chamados "starchitects", esse disco voador desenhado pelo francês é o primeiro prédio a se tornar realidade ali.

    Mas, por mais que suas frestas em forma de astros entrelaçados na cobertura façam chover raios de luz para dentro das galerias, pouca transparência e muita polêmica rondam uma das mais espetaculares operações culturais já realizadas no planeta.

    Os contornos cintilantes dessa pérola no golfo Pérsico seduzem os olhos de estetas e políticos ao mesmo tempo que refletem uma década de bonança e colapso financeiro, malabarismos diplomáticos e acusações de violações de direitos humanos.

    Quando esse delírio do "soft power" começou, os Emirados Árabes se firmavam como uma potência emergente calcada em valiosas reservas de combustíveis fósseis.

    Seus xeques acreditavam que podiam queimar montanhas de petrodólares para asfaltar uma via expressa rumo à primeira divisão do xadrez geopolítico, deixando para trás um passado de pescadores e beduínos para ser também uma potência cultural.

    Mas a crise de uma década atrás e a queda brutal no preço de seu maior tesouro fizeram secar os cofres.

    Na sequência, vieram escândalos sobre o tratamento dado aos operários na ilha, que chegaram a trabalhar em situação análoga à escravidão, com passaportes confiscados e dívidas impagáveis.

    Enquanto isso, longe dos canteiros de obras, na ponte aérea Paris-Abu Dhabi, negociações corriam a todo vapor.

    Em troca do nome Louvre, a maior grife do universo museológico, os árabes desembolsaram quase R$ 2 bilhões e vão pagar mais R$ 6 bilhões por 15 anos para que os franceses elaborem mostras temporárias e emprestem obras-primas de 17 dos maiores museus do país.

    Nas últimas semanas, aviões cargueiros pousam sem cessar em Abu Dhabi, atulhados de telas de Da Vinci, Manet, Monet e Van Gogh –a face mais vistosa do dinheiro.

    Franceses com o ego ferido, que viram instituições antes inabaláveis como o Louvre e o D'Orsay se curvarem a um projeto que muitos atacam como uma distração de emergentes cafonas e autoritários, temem possíveis danos a acervos e –mais grave– à imagem de suas coleções.

    Enquanto uma ala do mundo da arte enxerga tudo isso como derrota, políticos não perderam a oportunidade de posar bem para a foto –o presidente francês, Emmanuel Macron, esteve na inauguração e descreveu o novo Louvre como um marco da "luta contra os discursos de ódio".

    Mas ele não lembrou que à sombra do museu, seu antecessor, Nicolas Sarkozy, negociou a construção de uma base militar ali, a primeira expansão de Paris desse tipo desde o fim de suas colônias, quando os xeques fecharam negócio com os curadores.

    Enquanto políticos descrevem a operação cultural como um esforço de aproximação de Ocidente e Oriente, o governo árabe também entra na disputa por obras-primas no mercado de arte, enxergando como seus pares mais ao norte o potencial de commodity de telas e esculturas em tempos de ostentação de seus músculos diplomáticos.

    Um painel de especialistas a serviço do Louvre de Abu Dhabi vem fazendo o circuito jet-set das casas de leilão para arrematar mais pérolas ocidentais para o acervo, desde um Giovanni Bellini renascentista a um trabalho de Mondrian de R$ 91,5 milhões.

    E isso está longe do fim. No horizonte, ainda está a inauguração da filial de um Guggenheim na mesma ilha de Saadiyat, onde o museu americano de grife será vizinho do primo mais velho francês.

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