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    Amélia Toledo foi como alienígena no cenário artístico do país

    SILAS MARTÍ
    DE NOVA YORK

    13/11/2017 02h00

    Isaías Martins/Divulgação
    "Esferas Hápticas", obra da retrospectiva "Lembrei que Esqueci", última da artista Amélia Toledo (1926-2017)
    "Esferas Hápticas", obra da retrospectiva "Lembrei que Esqueci", última de Amélia Toledo (1926-2017)

    Nenhuma pedra é dura demais na obra de Amelia Toledo. Rodeadas de chapas de aço espelhado, dentro de poços de metal reluzente ou equilibradas sobre pedestais, suas rochas parecem vibrar com a instabilidade vulcânica da terra de onde surgiram.

    Brilho, aspereza e solidez evaporam em reflexos de contornos esticados, distorcidos.

    Em sete décadas de trabalho, Toledo, morta aos 90, na semana passada, ocupou um lugar alienígena na arte brasileira. Mesmo que em sintonia plena com os neoconcretistas e mergulhadas na tradição moderna, suas peças criam um universo lúdico inclassificável, atravessado de vontades táteis em conflito.

    Enquanto suas esculturas da década de 1950 criadas com chapas de aço recortadas e dobradas poderiam se confundir com peças da série "Trepante", de Lygia Clark, ou mesmo experimentos de Amilcar de Castro e Franz Weissmann, escultores da mesma vertente, tudo que veio depois inverte essa rota.

    Ou subverte. Toledo investigou e desafiou nessas peças as noções clássicas de plano e volume, como todos os artistas de sua geração preocupados com a desmaterialização da pintura no espaço físico, aquilo que depois seria entendido como um entrelaçamento da arte com a vida.

    Mas seu caminho teve desvios radicais. O uso de materiais como plástico, vidro e resina em obras pensadas para chacoalhar ou se enrolar nas mãos do espectador adentram o campo da arte cinética, de jogos de luz e movimento, ao mesmo tempo em que resumem uma de suas maiores questões estéticas.

    Toledo se esforça para dar forma e volume ao disforme, como a espuma e as bolhas de sabão presas em esferas de vidro interligadas de "Glu-Glu", uma de suas esculturas mais célebres, e outras obras criadas na década de 1960.

    É como se ela tentasse estruturar ali um mundo em ebulição, estratificar elementos insondáveis ou subterrâneos que depois são trazidos à superfície como a pele -ou veias e artérias- dessas obras.

    "Medusa", também da década de 1960, é um emaranhado de fios de plástico cheios de líquidos coloridos. O novelo, entregue à manipulação do público, vira uma pintura abstrata desconstruída, de traços mutantes que se materializam no espaço.

    Toledo cria ali um sistema entrópico, fadado a se reconfigurar com as forças do acaso, ao mesmo tempo em que flerta com as estratégias da arte pop e da performance.

    Nesse ponto, um dos trabalhos do momento em que mais usou plástico e resina pode ser visto como a ponte entre sua fase mais vistosa e colorida e a vertente mais política e brutalista de sua obra.

    "Esfera Háptica" é uma bola de resina moldada em torno de uma meia de náilon. Dentro desse volume, que lembra uma bolinha de gude, a peça de roupa feminina flutua como um fantasma, uma frágil e estilizada alusão à figura de uma artista mulher.

    Essa forma contida, asfixiada pelo plástico maciço, contrasta com a série de esculturas que Toledo fez nos anos 1970, quando a repressão do regime militar se tornava mais violenta no país.

    Os contornos de um corpo feminino, de bocas esboçando sorrisos hesitantes ou pés e pegadas errantes saltam da superfície de placas de gesso, como corpos e vozes brancas que se esforçam para fugir de um pântano pegajoso.

    Sua busca por formas ancestrais, encerradas em blocos de matéria, também se manifesta na série de trabalhos que fez usando ostras e conchas do mar, que se tornam ready-mades fósseis alinhavados em série, em diálogo com estratégias minimalistas e da chamada land art.

    Nada em toda sua obra parece aludir mais a esse movimento, aliás, que seus poços de aço inox cheios de pedras brutas e as colunas de cimento que viram pedestais de rochas como quartzo ou jaspe.

    Toledo, no caso, orquestrou todo o repertório plástico moderno para revelar a beleza e a energia de um mundo que nos rodeia, mas permanece secreto e inacessível como as pérolas presas nas conchas no fundo do mar.

    LEMBREI DO QUE ESQUECI
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