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    Livros discutem escravidão e outras formas de violência à população negra

    FERNANDA MENA
    DE SÃO PAULO

    20/11/2017 01h59

    Uma classe de crianças brancas de oito e nove anos foi separada em dois grupos de acordo com a cor de seus olhos e apresentada à assertiva de que pessoas de olhos azuis eram mais espertas, limpas e civilizadas que as de olhos castanhos.

    O impacto da diferenciação, reiterada pela professora, foi rápido e evidente: em poucas horas, "olhos castanhos" havia se tornado um xingamento entre os colegas, e aqueles tratados como inferiores demonstraram dificuldades incomuns nos exercícios em sala de aula.

    Ikê/Editoria de Arte/Folhapress

    No dia seguinte, a situação foi invertida, e as crianças de olhos azuis, agora diminuídas, tiveram pior desempenho ao repetir tarefas executadas com êxito no dia anterior.

    O experimento, elaborado pela professora americana Jane Elliott no dia seguinte ao assassinato do ativista negro Martin Luther King, em 1968, foi registrado em vídeo –hoje disponível na internet–, e traz indícios dos efeitos da discriminação sobre a subjetivação dos indivíduos e suas capacidades.

    É a esta exploração que se dedica a recém-lançada coletânea "O Racismo e o Negro no Brasil: Questões para a Psicanálise", organizada por Noemi Moritz Kon, Maria Lúcia da Silva e Cristiane Abud, a partir de debates do Instituto Sedes Sapientiae, de São Paulo.

    O livro reúne 16 artigos sobre a escravidão (o Brasil foi o último país a aboli-la) e sua transmutação em outras formas de violências que impactam, física e simbolicamente, a maioria da população do país.

    PROPORÇÃO

    Segundo o IBGE, 54% dos brasileiros declaram ser pretos ou pardos, mas essa proporção raramente se repete nas estatísticas do país.

    Negros são minoria entre os brasileiros mais ricos (18%), os diretores de empresas (5%) e aqueles que concluem o ensino superior –em cursos como o de medicina, eles não chegam a 5% por formandos.

    Por outro lado, negros têm enorme peso entre os brasileiros mais pobres (75%), vítimas de homicídio (71%), mortos por intervenção policial (76%) e na população carcerária (67%). Os dados são do IBGE, do Banco Interamericano de Desenvolvimento, do Instituto Superior de Ensino e Pesquisa e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

    "O racismo é um evento de longa duração, que perpassa toda a nossa vida. Não nos dá descanso e afeta nossa saúde física e mental ao produzir imagens distorcidas e depreciativas do negro ", avalia a psicanalista e ativista negra Maria Lúcia da Silva, coordenadora do Instituto Amma, Psiqué e Negritude.

    "TCHAU PARA O NEGÃO"
    Foi a partir de um protesto dela que o livro tomou forma.

    Numa aula do instituto sobre psicanálise e sexualidade infantil, em que se discutia a relação do bebê com seu produto (as fezes), um aluno relatou ser comum dizer para as crianças, à beira do vaso: "dá tchau para o seu negão!". A fala teria passado desapercebida não fosse a indignação de Silva, a única negra da sala.

    "Foi um choque", lembra Moritz Kon, que ministrava o curso. "Como é que eu, psicanalista, judia e irmã de uma estudiosa da escravidão [a historiadora Lilia Moritz Schwarcz], não ouvi aquela fala do mesmo jeito que a Maria Lúcia?", questiona-se. "Percebi que o racismo é um fenômeno que atravessa todos nós, criando um imaginário do negro como uma pessoa pior."

    Três episódios recentes ilustram essa imagem construída sobre negros no país.

    O jornalista da Globo William Waack, flagrado ao classificar um buzinaço de "coisa de preto"; o ministro do STF Luís Roberto Barroso, que chamou o ex-ministro Joaquim Barbosa de "negro de primeira linha" e dona Diva Guimarães, professora aposentada que cresceu ouvindo de freiras da escola que o negro tinha a pele escura porque era preguiçoso e chegara tarde demais para banhar-se no rio, cujas águas já estavam barrentas.

    História semelhante está em "Macunaíma", de Mário de Andrade, tido como obra fundadora do imaginário social brasileiro.

    Reconhecer o racismo em si, no entanto, é coisa rara: 91% dos brasileiros avaliam nossa sociedade como racista, mas apenas 3% admitem ser preconceituosos, de acordo com pesquisa Datafolha.

    Segundo Kon, os psicanalistas, em sua maioria brancos, não percebiam este tema como relevante. A baixa presença de negros no divã ajudou a distanciar os profissionais do tema.

    Uma sessão de terapia pode custar centenas de reais. Negros recebem, em média, metade do rendimento dos brancos –diferença que deve se equiparar apenas em 2089, segundo estimativa da ONG britânica Oxfam.

    NEGAÇÃO

    "Ainda assim, aqueles que chegam aos consultórios muitas vezes não encontravam escuta para o sofrimento gerado pelo racismo", diz Kon. "Negar que os nossos escravizados se tornaram cidadãos de segunda classe e que essa desigualdade existe até hoje é algo capaz de enlouquecer uma pessoa ou de causar uma apatia terrível."

    Para o psicanalista Jurandir Freire Costa, o racismo foi subestimado como tema psicanalítico no Brasil. Ele prefaciou o livro "Tornar-se Negro" (1983), obra pioneira nesta abordagem, de Neusa Silva Souza, cujo suicídio deu contornos ainda mais trágicos a este debate.

    Freire Costa aponta que, parasitado pelo racismo, o negro internaliza compulsoriamente um ideal de brancura inalcançável, que o leva a rejeitar sua identidade, cor e corpo, restringindo suas expectativas e potencialidades. "Não há dúvida que isso impacta o país como um todo."

    A grande novidade, diz ele, é o recente protagonismo e a valorização dos negros de sua imagem e identidade.

    Ikê/Folhapress

    NEGRITUDE

    Nos últimos 22 anos, aumentou o número de brasileiros que se declaram pardos (de 29% para 45%) e pretos (de 12% para 16%) enquanto houve queda de 30% naqueles que se atribuem a cor branca (de 50% para 35%).

    A mudança remete ao caso do jogador Neymar que, em 2010, aos 18 anos, declarou não sofrer preconceito: "Até porque não sou preto, né?", disse. Quatro anos depois, estrelou a campanha "Somos Todos Macacos", capitaneada pelo colega Daniel Alves, para quem havia sido atirada uma banana em campo.

    Racismo e o Negro no Brasil
    Noemi Moritz Kon, Cristiane Curi Abud, Maria Lúcia Da Silva
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    "A experiência do racismo leva ao auto-ódio. Quem quer ser negro numa sociedade que o desvaloriza, destrata e desumaniza? ", explica a filósofa e ativista Djamila Ribeiro, que acaba de lançar "O Que É Lugar de Fala?", em que questiona quem tem direito à voz numa sociedade em que as posições de poder, que determinam discursos e saberes, são majoritariamente ocupadas por homens brancos.

    "Sem acesso aos espaços de poder de maneira proporcional, a produção epistemológica dos negros fica invisível, e eles se tornam reféns do pensamento do outro porque nunca são pensados a partir de si mesmos", diz. "O maior acesso à universidade e as redes criadas pela internet, no entanto, estão mudando isso, permitindo que a gente faça mais barulho."

    E durma-se com um barulho desses.

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    RACISMO E O NEGRO NO BRASIL: QUESTÕES PARA A PSICANÁLISE
    ORGANIZADORAS Noemi Moritz Kon, Maria Lúcia da Silva e Cristiane Curi Abud
    EDITORA Perspectiva
    QUANTO R$ 29,90 (304 págs.)

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    O QUE É LUGAR DE FALA?
    AUTORA Djamila Ribeiro
    EDITORA Letramento
    QUANTO R$ 19,90 (96 págs.)

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    TORNAR-SE NEGRO
    AUTOR Neuza Santos Souza
    EDITORA Graal
    QUANTO fora de catálogo (88 págs.)

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    MACUNAÍMA
    AUTOR Mário de Andrade
    EDITORA diversas (obra está em domínio público)
    QUANTO R$ 14 (184 págs.)

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